“Não é só dar um copo com metadona, é chamar Manuel, João, Maria”

Foi o primeiro do género do país. Não obriga à abstinência de consumo de heroína e acompanha actualmente 1200 pessoas. O programa que junta a distribuição de metadona com o diagnóstico de tuberculose nasceu há 20 anos.

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Santa Apolónia, 8h25. Marco está um pouco mais afastado do grupo que rodeia a carrinha branca que não ostenta qualquer identificação. Um grupo que facilmente chega a 20, mais homens do que mulheres — a média de idades a rondar os 45 anos —, que saltitam à espera da sua vez. Já Marco está sentado numa saliência de pedra de um velho edifício há muito abandonado. De cabeça baixa, junto às mãos, faz ligeiros movimentos repetidos. Para trás e para a frente.

Durante dois anos esteve no programa de substituição opióide de baixo limiar de exigência (PSOBLE). Na versão curta: programa de substituição com metadona — um medicamento usado sob supervisão médica que evita a síndrome da privação dos consumidores de heroína. Era sem-abrigo, foi encaminhado para uma comunidade terapêutica na linha de Cascais, que abandonou. Teve uma recaída.

No dia em que o encontrámos, estava havia duas semanas a consumir heroína. Voltou ali, naquela manhã, para pedir para voltar ao programa.

Criado há 20 anos, a 1 de Setembro de 1998, o programa de substituição com metadona foi uma espécie de resposta de emergência ao Casal Ventoso, tantas vezes apelidado “o grande mercado de droga” de Lisboa. E foi o primeiro do género no país — outros surgiram, posteriormente, noutros locais. São as mesmas duas décadas que se celebram, na mesma altura, da criação do protocolo que juntou este programa de substituição aos centros de diagnóstico pneumológico de Alcântara e da Alameda. Uma ideia da médica Maria da Conceição Gomes, responsável pelo departamento da tuberculose da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), com o objectivo de aumentar os diagnósticos de tuberculose, numa população especialmente vulnerável, e de reduzir o abandono dos tratamentos.

Quem quiser entrar no programa de substituição com metadona tem de fazer obrigatoriamente o rastreio da tuberculose. O primeiro passo para “um seguimento regular, com exames de seis em seis meses ou espaçados por um ano, conforme a situação”, explica a médica. Fica assegurado, assim, um seguimento mais próximo do que o que a maioria da população tem.

“É porreiro ter estas coisas”

“É a primeira vez que venho a esta [carrinha], a outra era mais pequena. Já não fazia o exame havia um ano e meio. É porreiro ter estas coisas”, diz Filipe, de 57 anos. Com uma naturalidade infantil, conta como é lá por dentro: “Tem ar condicionado e um espaço para tirarmos a camisa, o cachecol e o casaco. Fiz duas vezes o exame.”

“Já conheço este senhor desde que ano?”, brinca Cláudia Pereira, psicóloga e coordenadora do programa de substituição com metadona da Ares do Pinhal, a instituição particular de solidariedade social que gere o programa vocacionado para a redução de riscos e minimização de danos.

“Ó dr.ª Cláudia, desde 98”, responde Filipe. Esteve cinco anos numa clínica no Porto. “Vim embora por minha vontade. Estive nove anos na rua. Um senhor teve pena de mim e levou-me para a garagem, colocou lá um colchão para eu dormir. Sabe o que é? São as companhias”, diz, para resumir a forma como começou a consumir droga quando ainda era rapaz. Hoje vive com a irmã e sabe que não pode colocar “o pé em ramo verde”.

Filipe explica que ali não toma só a metadona. Às quartas-feiras de manhã a carrinha traz um médico de clínica geral para fazer consulta. “Guardaram sempre o meu processo. Estou bem acompanhado.” E continua: “Deixa-me cá ver se os meus comprimidos estão todos bem.” Tira do bolso das calças um saco dado pelo enfermeiro Filipe que está na carrinha. “Estão aqui os da esquizofrenia, mais os três ao deitar, os quatro ao jantar”, enumera.

Filipe vai embora. Mas antes atira para um dos técnicos da Ares do Pinhal “Ah, Rosário, hoje a minha irmã vai pagar-me um bitoque.” Para todos, Rosário tem uma palavra simpática, uma palmadinha nas costas que cria uma relação de grande proximidade entre terapeutas e utentes.

20 mil exames radiológicos

1998 foi o início da operação de reconversão do Casal Ventoso, por onde passavam diariamente cerca de cinco mil toxicodependentes, segundo os números da Ares do Pinhal.

Já existiam então programas de tratamento em ambulatório (sem internamento) com metadona, mas obrigavam à abstinência de consumos. O primeiro no país foi no Norte (Boavista), em 1976, e depois o do centro de atendimento de toxicodependentes das Taipas, em 1994. Eram diferentes do programa de baixo limiar de exigência de toma assistida, criado com o objectivo de reduzir os consumos — eliminá-los se possível —, mas sem exigir a sua ausência total. O programa de baixo limiar de exigência tinha ainda outra meta: diminuir os comportamentos de risco, como o recurso a seringas usadas.

Começou a funcionar num gabinete de apoio no Casal Ventoso. Mas o perfil dos consumidores mudou, envelheceram. Hoje estão espalhados pela cidade. As necessidades, essas não deixaram de existir. E desde Agosto de 2001 que do programa fazem parte duas carrinhas que param em cinco zonas de Lisboa, de manhã e à tarde, 365 dias por ano.

Já o rastreio à tuberculose era feito nos centros de diagnóstico pneumológico (CDP) e nas unidades móveis de radiorrastreio, que tinham uma localização própria. Estratégia que mudou em 2011, quando o CDP da 24 de Julho fechou e passou a existir um único centro no Lumiar. Desde então, duas vezes por mês, as duas carrinhas andam juntas. Entre 2001 e 2017 um total de 6856 utentes foram rastreados, fizeram-se 20 mil exames radiológicos, foram detectados 324 novos casos de tuberculose e 19 recidivas.

E este ano trouxe uma novidade. Uma carrinha de radiorrastreio nova, com melhor qualidade de imagem, mais capacidade de detecção de outras doenças respiratórias, redução de tempo de diagnóstico e sistema de wifi que permite que um médico que está no centro de diagnóstico veja o exame enviado por email ou telemóvel. Um investimento de 700 mil euros financiado pelo programa Portugal 2020.

“A droga é um atalho de vida. Atalhei caminho”

A psicóloga Cláudia Pereira explica que muitas das pessoas que seguem — cerca de 1200 com uma média de idades de 45 anos — fazem medicação para a tuberculose, VIH, hepatite C, antibióticos, anti-hipertensores, medicação psiquiátrica.

“Damos continuidade ao tratamento que foi prescrito pelo hospital. Por norma trazem as receitas que levantamos. Se nos derem autorização, vamos com o doente levantar e acompanhamo-los às consultas de seguimento se for preciso.” Também fazem troca de seringas e distribuição de preservativos.

João tem 58 anos. Fumou os primeiros charros aos 13. Aos 26 anos consumia heroína. “A droga é um atalho da vida. Não sei porquê, atalhei caminho que não devia.” Esteve oito anos sem consumir, mas recaiu como tantos outros ali. Não acreditava no programa, agora tem pena de não ter entrado mais cedo. Diz que a metadona “tirou muita gente da rua e da criminalidade”. O apoio que recebeu permitiu-lhe saber que estava infectado com hepatite C. O tratamento ainda não terminou, mas a presença do vírus já é negativa.

A ligação mais próxima com o radiorrastreio de tuberculose faz com que a saúde não seja uma prioridade esquecida. “As questões respiratórias são um problema nesta população. Grande parte, talvez mais de 50%, têm problemas pulmonares provocados pelo consumo de drogas fumadas, uso do tabaco, más condições habitacionais e fragilidade social”, refere a psicóloga.

“Como esta carrinha não há nenhuma no país”, diz Maria da Conceição Gomes a um utente. A parceria “facilita o rastreio e o tratamento”, prossegue a médica pneumologista, que garante que a adesão é boa. “Eles também passam a palavra uns aos outros. A boa recepção também facilita e a preocupação que sentem que o serviço tem com eles beneficia imenso esta postura para o rastreio.” Uma preocupação que “é também a pensar na família, nos amigos e colegas de trabalho” ao evitar riscos de possíveis contágios.

Quase duas horas depois de ter chegado, Marco recebe o aval para reintegrar o programa de substituição com metadona. Mas não deixa Santa Apolónia sem antes subir à carrinha de radiorrastreio.

A droga, “por tudo e por nada”

Torres de Chelas, 10h30. Segunda paragem da manhã, agora num pequeno descampado, à beira da estrada e perto da saída do metro. Não é preciso esperar muito para que cheguem os primeiros. O ritual repete-se: dizem o número de utente do programa, recebem a dose de metadona e o papel para fazer o raios X.

Mário, de 41 anos, pára ali antes de seguir caminho para o Algarve. Na véspera fez análises ao sangue, naquele dia o raios X. “Tenho de saber se está tudo bem para tratar os meus problemas”, explica. Pede, como os outros utentes desta reportagem, um nome fictício. Tem “mulher, trabalho, casa, carro”. “As drogas são um sintoma da sociedade, de não se conseguir lidar com a pressão, com a falta de carinho, do desejo de se ter um sentimento de pertença num grupo de amigos”, justifica. Assegura que dos pais recebeu toda a liberdade e o amor que uma criança precisa. “A culpa não é deles.”

Também ele recaiu depois de dois anos de abstinência. “Porquê? Porque se está feliz ou triste, por tudo e por nada.” Aceita falar porque quer “dar uma boa imagem do programa” que o tem mantido longe das recaídas e dos consumos de heroína que o fizeram tentar o suicídio. Agora “não tomo drogas, não bebo e não fumo” — o tabaco não conta nesta equação, mas também esse quer deixar. Faz reuniões com os narcóticos anónimos que o ajudam nos momentos em que está “chateado ou eufórico”. Noutras vezes, é ele que faz o papel de “técnico motivacional” ao contar a sua história a outros.

Gestor de cuidados de saúde

O programa de substituição com metadona é monitorizado pela Divisão de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências (DICAD) da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. O coordenador, Joaquim Fonseca, faz “um balanço altamente positivo”, a começar “num indicador muito importante e que tem a ver com a taxa de incidência do VIH que hoje tem uma curva quase a tocar no zero”.  Parcerias, como a que existe com a unidade de radiorrastreio da tuberculose, permitiram mudar a saúde pública ao reduzir riscos de contágio. Sobre estas equipas, diz que “acabam por fazer o papel de gestor de cuidados de saúde que falta no SNS”. Uma gestão que evita consultas falhadas, seguimentos perdidos, um desligar dos centros de saúde e hospitais.

Marta Borges, também do DICAD, reforça: “Existe uma relação. Não é só dar um copo com metadona, é chamar Manuel, João ou Maria. Estas equipas são equipas multidisciplinares mais atentas a determinados detalhes, que vão educando para a saúde as pessoas que usam droga e as suas famílias.”

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