Internar incendiários só no Verão é dar-lhes umas férias: "Tratamento? Zero”
“Tratamento intermitente não é tratamento", defendeu psiquiatra num debate onde se falou de incendiários e de alternativas à prisão.
Quando opta por internar um incendiário compulsivamente numa enfermaria durante uns meses em vez de o prender, o Estado não trata da sua saúde mental, como era suposto: limita-se a oferecer-lhe umas férias longe das matas. É o que diz o psiquiatra forense Fernando Vieira, que esteve neste sábado num congresso sobre comportamento criminal no Instituto Universitário Egas Moniz, no Monte da Caparica.
Défice cognitivo, dificuldades de integração social e alcoolismo são algumas características comuns aos homens e por vezes também às mulheres que têm sido apanhados país fora a deitar fogo ao arvoredo. Quando chegam a sentar-se no banco dos réus, cabe aos juízes decidir se o atraso mental de que sofrem é justificação suficiente para os dispensarem da cadeia e os remeterem para internamento clínico. A lei permite que beneficiem da medida aqueles que a justiça declare inimputáveis.
Mas há vários problemas, avança o psiquiatra forense. Desde logo, porque “do ponto de vista clínico a inimputabilidade não é necessariamente um défice intelectual”. Durante a sua vida profissional, que conta com uma passagem pelo Instituto de Medicina Legal, Fernando Vieira deparou-se com pessoas que, apesar de revelarem um quociente de inteligência abaixo da média, percebiam que atear um fogo é uma prática criminosa. E fala mesmo em “paternalismo jurídico” quando é decretada a inimputabilidade a algumas delas. Afinal de contas, “a inimputabilidade será bem mais rara do que aquilo que se diz”, defende.
Até Outubro passado, a lei que previa que só aos inimputáveis condenados por fogo posto pudesse ser decretado o internamento por períodos não contínuos, apenas durante a época de incêndios. “Eram férias para pessoas com atraso mental. Tratamento? Zero”, declarou o especialista. “O tratamento intermitente nada tem de tratamento."
A discriminação deixou entretanto de existir: neste momento já é possível os tribunais decretarem penas não contínuas aos restantes incendiários, mesmo aos não inimputáveis, se possível a cumprir em casa com pulseira electrónica, por forma a mantê-los também afastados da floresta nos meses mais quentes.
Projectos em cadeias
Só em Janeiro passado arrancou em duas cadeias da zona de Lisboa o primeiro projecto-piloto destinado a reabilitar incendiários, que inclui o recurso a métodos de aumento da auto-estima e de controlo emocional. Cristina Soeiro, da Polícia Judiciária, trabalha há muitos anos no perfil dos incendiários portugueses e não tem dúvidas: nem todos devem ir para a cadeia. Há casos em que se revela mais profícuo fazerem trabalho comunitário em vez de ficarem atrás das grades, explicou também no congresso do Monte da Caparica. Ajudando num lar de idosos, por exemplo, por forma a desenvolverem competências sociais que muitas vezes lhes faltam.
Seja como for, há que ter em mente que Portugal não é nem nunca foi um país de incendiários, ressalva: apenas 13% a 20% dos incêndios florestais são causados por fogo posto. Por estranho que possa parecer, as causas naturais desempenham um papel importante no fenómeno, adiantou outro especialista presente no encontro, Gil Carvalho, igualmente da Polícia Judiciária. É o caso das trovoadas. “Os grandes incêndios nem sempre têm causas humanas. Podem ter causas naturais ou acidentais”, assinalou. Os terrenos junto às linhas férreas, por exemplo, são particularmente susceptíveis ao fogo, por causa dos sistemas de escape e de travagem dos comboios, que chegam a libertar partículas incandescentes.
Gil Carvalho chamou ainda a atenção para as recentes mortes de idosos que andavam a fazer queimadas na sequência das exigências impostas pelo Governo em matéria de limpeza de mato. A GNR registou seis óbitos só este ano. A Protecção Civil emitiu um comunicado no mês passado em que recomenda várias medidas de segurança, como informar os bombeiros ou a Protecção Civil com antecedência. “O comunicado dá que pensar. Afinal, são as pessoas mais vulneráveis que acabam por sofrer com isto”, observou o inspector.