No centro histórico dorme-se por 10 euros por noite
A futura lei do alojamento local tem de distinguir alugueres individuais de alugueres empresariais e impor limites de dias por ano. É o mínimo.
Escrevi o nome da minha rua no site da Airbnb e apareceram 142 apartamentos para alugar. Não são todos literalmente na minha rua, mas são todos no centro histórico de Lisboa e todos a minutos de distância uns dos outros. Mal alarguei o raio e escrevi “Baixa-Chiado”, a lista aumentou para 300.
A isto, temos de somar os 75 hostels (segundo o HostelWorld), os hotéis e as guest houses. No meu prédio há uma, no prédio ao lado há outra, no prédio a seguir há outra — desta vez é literal.
Em 2014, Manuel Salgado, vereador do Planeamento, Urbanismo e Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Lisboa, disse que 25 edifícios da Baixa de Lisboa estavam a ser reabilitados e que, desses, 30% seriam para habitação, 27% para serviços, 22% para comércio e 12% para hotelaria. Esta divisão — que garantiria o “mix funcional” que os especialistas defendem —, poderá até ter sido cumprida. O problema é que os 30% reservados para “habitação” devem estar todos a ser usados como apartamentos de aluguer temporário onde um turista paga pouco mais de dez euros por noite.
Há duas coisas que se tornam evidentes depois de ler dezenas de anúncios do Airbnb: a frase “não vivemos na casa” aparece com frequência (são honestos) e os preços são tão baixos que qualquer estudante ou operário pode dormir “no bairro que os romanos escolheram para o centro da sua vida” (são competitivos).
Há apartamentos onde, dividindo o aluguer diário pelo número de hóspedes autorizados, dorme-se em Alfama por cinco euros por noite, na Sé por 14, na Rua da Madalena por 12, na Rua dos Fanqueiros por 13, na Rua Augusta por 15, no Chiado por 18. O Airbnb promove a ideia de os turistas viverem “como os locais”, mas numa coisa são bem diferentes: pagam muitíssimo menos do que os “locais” para dormir no centro da cidade.
Nada contra os estudantes ou os operários, nem contra quem quer fazer dinheiro alugando os seus apartamentos a 80, 100 ou 400 euros por dia. Mas se nada for feito, em breve os centros não têm residentes, não têm “densidade de vida quotidiana”, não têm vida. Um leitor escreveu-me a dizer que “a ideia mirífica de que todos os lisboetas podem viver no centro da cidade é simplesmente absurda”. É verdade. Mas se não fizermos nada arriscamo-nos a que, em breve, não viva nenhum lisboeta, nem nenhum português, nem nenhum estrangeiro. Não haverá ninguém a viver, só a dormir umas noites.
Os residentes ricos não querem nem a confusão nem a descaracterização que se adivinha (e não prescindem de garagem) e os residentes pobres estão a ser expulsos com os residentes de classe média. Como nas “feiras medievais” que animam a nossa província no Verão, os turistas vão ficar a olhar uns para os outros com o cenário pombalino ao fundo.
Como outros países já fizeram, a futura lei do alojamento local tem de proteger as nossas cidades, tem de distinguir alugueres individuais de alugueres empresariais, e tem de impor limites de dias por ano. Nas três freguesias de Lisboa com maior “pegada turística” (Misericórdia, Santa Maria Maior e São Vicente), há 11 empresas que gerem alojamento local. Segundo um estudo recente da Quaternaire Portugal (encomendado pelas três juntas), são 450 apartamentos e 1200 camas. Só na Misericórdia, a Parimob gere 34 apartamentos.
O Airbnb e o alojamento local já não são a ideia simpática da “economia da partilha”. São um negócio que, se não for mais regulado e depressa, vai dar cabo das nossas cidades.
Notícia corrigida às 17h57 de 30 de Abril de 2018: o site da HostelWorld tem registados em Lisboa cerca de 80 hostels (e não 157 como inicialmente escrito). Apesar de a homepage indicar de forma explícita, e ao lado do logotipo, a frase "155 Hostels em Lisboa", o site inclui hotéis e apartamentos.