Guerra de palavras antecipa ataque de efeitos imprevisíveis
Ninguém quer arriscar uma guerra entre potências nucleares às portas da Europa, mas também é certo que um ataque "punitivo limitado" não destruirá a capacidade de Assad para continuar a matar sírios com qualquer tipo de arma.
Ameaças e respostas, retórica belicista, propaganda. Uma guerra faz-se de tudo isto. “Prepara-te Rússia, porque [os mísseis] vão a caminho, lindos, novos e ‘inteligentes’!”, ameaçou Donald Trump através do seu meio preferencial para comunicar com o mundo, o Twitter. A realidade é mais complexa e não cabe em tweets.
Trump retorquia assim a uma provocação russa: o embaixador no Líbano (posição que tradicionalmente não é tida como importante em Moscovo), Alexander Zasipkin, deu uma entrevista à televisão do Hezbollah avisando os Estados Unidos que derrubariam quaisquer mísseis americanos, assim como “a origem do seu lançamento”, ou seja, navios americanos no Mediterrâneo. Antes, Moscovo afirmara que responderá a qualquer acto em que russos sejam atingidos.
A maior prova de que à escalada nas palavras muito dificilmente se seguirá uma escalada no terreno chegou via presidente do Comité de Defesa da câmara baixa do Parlamento russo, Vladimir Shamanov. Em declarações à agência Interfax, o deputado confirmou que Moscovo está em contacto directo com o Chefe de Estado Interarmas dos EUA.
Nas mentes de Trump, Emmanuel Macron e Theresa May, os líderes europeus disponíveis para participar numa operação militar contra Bashar al-Assad, não restam dúvidas sobre as responsabilidades do ataque de sábado contra Douma, onde foram usados agentes químicos; suspeita-se de uma mistura de gás sarin e cloro (o cloro é especialmente eficaz em espaços confinados – muitos civis já estavam em caves, abrigados dos raides aéreos – e torna mais difícil a identificação do sarin).
O tipo de ataque é consistente com acções anteriores com armas químicas (confirmadas em investigações da ONU) lançadas pelo regime; a estratégia por trás da decisão também. Douma, último bastião da região de Ghouta Oriental, enclave rebelde nos arredores de Damasco cercado há mais de quatro anos, resistia desde meados de Fevereiro a intensos bombardeamentos; no dia a seguir ao ataque em que terão sido usadas armas químicas, o grupo Jaish al-Islam rendeu-se, aceitando um acordo para deixar sair civis e combatentes.
A Organização Mundial de Saúde confirma que 500 pessoas foram tratadas por “sinais e sintomas consistentes com a exposição a químicos tóxicos” e pede “acesso imediato à área para cuidar dos afectados e oferecer uma resposta global de saúde pública”. Para já, Damasco e Moscovo convidaram a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) a visitar o local dos ataques. A Rússia, que num primeiro momento garantiu que as imagens saídas de Douma “eram fabricadas”, diz agora que um dos motivos para um potencial bombardeamento americano será “fazer desaparecer as provas” de tal ataque.
Pelo segundo dia consecutivo, e depois da tentativa falhada para alcançar um entendimento no Conselho de Segurança da ONU, Trump, Macron e May estiveram em contacto e terão avançado nos preparativos para uma acção militar contra Assad. As companhias áreas foram avisadas para não sobrevoarem a Síria ou o Mediterrâneo Oriental durante 72 horas, enquanto aviões russos sobrevoavam navios franceses e americanos armados com mísseis cruzeiro na mesma zona.
Pressão prolongada
O problema destes líderes (e dos seus potenciais aliados árabes, como a Arábia Saudita e o Qatar) é decidirem que objectivos têm e, em função disso, que tipo de intervenção devem ordenar. Impedir Assad de voltar matar sírios com armas químicas, como quis Trump, com o ataque de 2017? Destruir por completo a sua capacidade aérea? Mais do que isso?
Mesmo se o objectivo for o primeiro, não é fácil perceber como alcançá-lo, sem arriscar uma escalada ou sem que isso envolva um tipo de envolvimento no conflito que ninguém parece disposto a ter. Certo é que um ataque “punitivo limitado” como o de Abril de 2017, quando Trump ordenou o disparo de 59 mísseis contra a base área que o regime de Assad usara para atacar com gás sarin Khan Sheikhoun, no noroeste da Síria, que fez mais de 80 mortos.
“Há uma tensão entre o desejo de fazer algo maior do que da última vez a e a intenção clara do Presidente de não se envolver em operações prolongadas”, diz Michèle A. Flournoy, secretário adjunto da Defesa com Barack Obama, citada pelo jornal The New York Times. “É possível que eles preparem um só ataque maior ou uma série de ataques mais pequenos. Mas, no fim de contas, só uma pressão prolongada mudaria os cálculos de Assad sobre o uso de armas químicas”.
David F. Gordon, director de planeamento político no Departamento de Estado na presidência de George W. Bush diz mais ou menos o mesmo, recorrendo a outros termos. “Provavelmente, o que eles estão a fazer é a pensar. ‘O que é que podemos destruir que enfraqueça este tipo?’”, descreve. “Estamos prontos para oferecer diferentes opções militares, se forem apropriadas, quando o Presidente o determinar”, afirmou o secretário da Defesa, Jim Mattis.
Assad, entretanto, já está a pôr a salvo todos os sistemas de armamento importantes ao mesmo tempo que terá deslocado o grosso da sua capacidade aérea para a base russa perto de Latakia, junto ao Mediterrâneo.
85 vezes desde 2013
Atacar por atacar pode ser até contraproducente. “Seria muito prejudicial dizer que haverá um grande preço a pagar [como afirmou Trump, no domingo] e depois fazer menos do que o ano passado”, diz o assessor de um congressista em declarações à revista Foreign Policy.
Segundo a ONG Human Rights Watch, Assad usou armas químicas contra a sua população 85 vezes desde Agosto de 2013, quando mais de 1400 pessoas sucumbiram a um ataque com sarin em Ghouta. Foi o mais perto que esteve de arriscar uma intervenção internacional alargada contra o seu regime. Os EUA, com Barack Obama no poder, recuaram então face a um acordo mediado pelos russo para Damasco identificar e abdicar de todas as armas de destruição maciça de que dispunha – o que obviamente não aconteceu.
A guerra síria como a conhecemos durante alguns anos está prestes a terminar. Com iranianos, membros do Hezbollah libanês e até milícias iraquianas no terreno, mais a potência da aviação russa, Assad derrotou já quase toda a oposição. O problema é que na Síria estão envolvidos muitos mais actores e ninguém quer provocar uma escalada que resulte num conflito entre potências nucleares às portas da Europa.
Como escreve o jornal Le Monde em editorial, “desta vez é preciso ir mais longe” do que em 2017, mas “sem precipitações e com o maior número de aliados possíveis, sem negligenciar os efeitos de operações num ambiente absolutamente explosivo e na presença de actores como a Rússia e o Irão, mas também Israel e a Turquia”. Termina o jornal: “Poucas vezes o Médio Oriente terá estado tão perigoso”.