Espanha: a judicialização da política
Na Catalunha reina um clima doentio. Por outro lado, o sistema político espanhol está bloqueado e o Governo entregou aos juízes a condução da política, o que leva à politização da Justiça.
1. Os últimos acontecimentos na Catalunha parecem marcar o fim do procés independentista lançado nas eleições de 2015. Não o fim do conflito, que se mantém aceso e permanece sem solução à vista. Antoni Bassas, membro da direcção do jornal independentista Ara, resumiu na sexta-feira: “Com Junqueras na prisão e [Marta] Rovira no exílio, a Esquerda Republicana [ERC] enfrenta um dos mais graves momentos da sua história, como todo o país. Hoje penso que é o exílio de Rovira que marca o final do procés, tal como o entendíamos, mais do que aquilo que ontem disse a CUP.” Na véspera, depois de liquidar a eleição de Jordi Turull, a CUP deu o procés como acabado. Foi a mesma CUP, graças à sua minúscula mas indispensável bancada parlamentar, que sempre forçou a mão aos partidos nacionalistas e ao ex-president Puigdemont, empurrando-os para o abismo.
A frustrada eleição de Jordi Turull, na quinta-feira, foi uma mera manobra tacticista para que ele comparecesse perante o juiz Pablo Llarena na qualidade de president da Generalitat, de modo a provocar uma “emoção nacional”, caso fosse preso, uma comoção susceptível de reanimar um movimento independentista desmobilizado. A sondagem de Fevereiro do Centre d’Estudis d’Opinió (CEO), da Generalitat, falava em “cansaço secessionista” e revelava uma significativa queda dos apoiantes da independência. Entretanto, continuará em vigor o Artigo 155 e, com ele, a tutela do Governo sobre a Generalitat, até à quase inevitável realização de novas eleições.
2. Segundo a imprensa catalã, o clima é doentio. Uns, na ERC ou no PDCAT, procuram uma saída “realista” para eleger um president e afastar o Artigo 155, de modo a retomarem o controlo do vasto orçamento da Generalitat, ou seja, recuperar a autonomia. Crêem que é possível “olhar o futuro sem renunciar a uma ilusão que se instalou em dois milhões de catalães”, escreve Lola Garcia, directora adjunta do La Vanguardia. Por isso mascaram a evidência para evitar que os eleitores os interpretem como reconhecendo uma derrota. “Outros defendem que a guerra contra o Estado não acabou e está no seu clímax, e que é preciso intensificar o confronto com o sistema político e judicial espanhol para o encostar às cordas.”
No mesmo jornal, anota Enric Juliana: “Na Catalunha, começa a detectar-se um discurso hostil aos políticos soberanistas em círculos independentistas que se sentem defraudados pelo curso dos acontecimentos. (...) Há gente de boa fé que continua a ver uma jogada magistral em cada passo atrás, mas começam também a ouvir-se outras vozes: ‘Enganaram-nos.’ A palavra traição pronuncia-se e escreve-se cada vez com mais frequência.”
Lembrando velhos fantasmas nacionais, observa o colunista Francesc-Marc Álvaro: “De novo, tudo leva ao colapso. Os guionistas do processo não se conseguem demarcar de uma lógica perversa. Vivemos na perpétua véspera de uma insurreição, mas essa insurreição nunca chega, como pudemos comprovar no 27 e no 28 de Outubro, quando depois da DUI [Declaração Unilateral de Independência] desapareceu toda a gente que tinha alguma responsabilidade.” Enfim: “O ciclo de indignação e de repressão aparece como uma nora sem fim. As perspectivas são mais nevoeiro e confusão.”
3. Em artigos anteriores, analisei os mitos nacionalistas, as ilusões e a irresponsabilidade dos independentistas (ver, por exemplo, PÚBLICO de 25/11/17 e 30/12/17). Os nacionalistas assumem-se como intérpretes da “vontade popular”, num país em que há uma enraizada corrente soberanista, mas em que a maioria da população se opõe à independência. E, enfim, a implacável disputa da hegemonia entre nacionalistas: a luta pelo poder fez acumular os erros estratégicos, o primeiro dos quais foi considerar que o Estado espanhol estava enfraquecido e pouco ou nada poderia fazer.
Falta focar o outro lado: a responsabilidade do Estado espanhol no desenvolvimento do conflito, através dos dois últimos chefes do Governo, José Luis Zapatero e Mariano Rajoy.
Foi Zapatero quem acendeu o rastilho. Em Novembro de 2003, fez em Barcelona uma promessa suicidária: “Respeitarei o Estatuto que o parlament aprovar.” Não se propôs apenas negociá-lo, como os catalães pediam. Pagava um favor ao então president catalão, Pasqual Maragall, que o ajudara a conquistar a liderança do PSOE. E queria ganhar votos para as legislativas de 2004. O socialista Maragall governava aliado à ERC e Artur Mas, o sucessor de Jordi Pujol na Convergência e União (CiU), chefiava a oposição.
Zapatero ganhou as eleições. Mas na Catalunha o efeito foi perverso. Republicanos e convergentes lançaram-se numa incontrolável escalada para provar quem era mais nacionalista na elaboração do Estatuto. Maragall foi impotente para a travar. O texto aprovado era inimaginável. Uma negociação de emergência entre Zapatero e Mas conseguiu limitar os estragos. Mas não todos. O Estatuto emendado foi aprovado pelo Congresso e pelo Senado e, depois, referendado e aprovado pelos catalães.
Em 2006, Rajoy, líder do Partido Popular, iniciou uma campanha denunciando a inconstitucionalidade do Estatuto, em grande medida por razões eleitoralistas. Em 2010, o Tribunal Constitucional anulou algumas das disposições, o que provocou uma comoção na Catalunha.
Uma vez reaberta a “questão catalã”, em 2012, Rajoy, agora presidente do Governo, “olhou para o lado” e manteve a sua fleumática indiferença. Quando o conflito se agravou a partir de 2015, remeteu a sua condução para os tribunais, o Constitucional e o Supremo.
4. Ontem, o juiz Pablo Llarena ordenou a prisão de Jordi Turull (na foto) e quatro outros responsáveis independentistas. Não são presos políticos, são políticos presos. Mas o problema não está nesta distinção. Horas antes, Felipe González tinha declarado: “Oxalá que não metam na cadeia nenhum dos independentistas.” Explicou com clareza: “A política está a degradar-se, porque está judicializada e, uma vez que este processo chega a determinado ponto, a Justiça começa a tomar decisões políticas. Chama-se a isso ‘governo dos juízes’ [que leva à] inevitável politização da Justiça.”
A política espanhola está bloqueada. A competição entre o PP e o Cidadãos, a desorientação do PSOE e o declínio do Podemos impedem qualquer debate, e muito menos iniciativas, sobre a autonomia da Catalunha ou a revisão constitucional.
Conclui Juliana: “Llarena converteu-se no grande guionista da política espanhola.”