EDP pagou bónus de quase 20 milhões a construtoras investigadas na Lava-Jato e na Operação Marquês
O reconhecimento de que podem ter existido práticas irregulares entre a EDP e as construtoras Lena e Odebrecht levou António Mexia a proteger-se e a encarregar a EY Portugal de realizar uma auditoria ao plano de barragens.
Em 2017, a EDP fez entrar nos cofres do consórcio luso-brasileiro formado pelas construtoras Lena e Odebrecht uma quantia extra a carecer de justificação. As empresas reclamaram quase 20 milhões de euros, e o pagamento, que se terá situado abaixo daquele montante, levantou objecções dentro da empresa liderada por António Mexia e ajudou a fazer disparar em 55% (para 760 milhões de euros) o custo da Barragem do Baixo Sabor, em Trás-os-Montes. A quantia foi acordada já depois de a infra-estrutura hidroeléctrica ter sido inaugurada e no contexto de uma negociação confinada ao círculo restrito da dona da obra, a EDP, e das duas empreiteiras, apurou o PÚBLICO.
O último capítulo da construção da barragem hidroeléctrica do Baixo Sabor, em Trás-os-Montes, começou a ser escrito só em 2017, na sala de reuniões dos escritórios de advogados, onde os representantes da EDP e os do consórcio luso-brasileiro tinham a atenção voltada para uma folha de cálculo: o documento onde a Odebrecht e a Lena inscreveram a verba adicional que queriam receber, mas que tinham dificuldade em justificar e a dona da obra hesitava em legitimar. E foi esta ponta solta que foi dirimida no segredo dos advogados, tendo as partes prescindido de recorrer a um tribunal arbitral. A verba reclamada foi ajustada para um valor inferior aos quase 20 milhões pedidos.
Confrontado com a existência de um tribunal arbitral para dirimir o pedido das construtoras, fonte oficial da EDP explicou que, embora tivesse sido equacionado, “não houve” nenhum. A mesma fonte adianta que “houve custos adicionais que resultaram, essencialmente, de duas circunstâncias: a) atrasos na obra decorrentes das providências cautelares requeridas contra o Estado e b) um conjunto de trabalhos que não estavam especificados nos preços contratuais acordados”. Em relação ao valor pago, a EDP não prestou qualquer esclarecimento, ignorando a questão.
A decisão de António Mexia de ressarcir a Odebrecht e a Lena com a quantia extra levantou objecções por parte de alguns executivos da EDP, para quem o pagamento “carecia de fundamentação”. Mas tudo se passou em ambiente controlado. E percebe-se porquê.
É que quando, em 2017, a EDP e a Odebrecht-Lena se sentaram à mesa, longe dos tribunais judiciais, para fechar o dossier, as grandes investigações desencadeadas dos dois lados do Atlântico tinham entrado nos “finalmentes”. As condenações produziam-se em cascata. Entre os protagonistas do Lava-Jato destacam-se a Odebrecht e o ex-Presidente Lula da Silva, enquanto na Operação Furacão figuram o Grupo Lena e o ex-primeiro-ministro José Sócrates. E o potencial político era, evidentemente, explosivo.
À construtora de Leiria, o Ministério Público já imputou os crimes de corrupção activa, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada, enquanto no Brasil o juiz Sérgio Moro colocou a Odebrecht à frente da engrenagem da maior rede de corrupção de desvio de verbas de grandes obras com cariz público. Traduzindo: a troco de aceder aos grandes contratos a necessitarem de autorizações políticas, a empreiteira distribuía comissões a políticos e gestores. E sobrefacturava aos clientes para corromper.
Como parte dos acordos de delação premiada, colaboradores da empreiteira brasileira revelaram em 2016 que da Odebrecht tinham saído, em 2015, 750 mil euros para pagar subornos relacionados com o projecto do Baixo Sabor. Uma quantia modesta quando comparada com as somas exorbitantes referidas no Lava-Jato, mas que tornou sensível a discussão dirimida em tribunal arbitral em torno do pagamento dos 20 milhões de euros.
Um dos pivôs da negociação de bastidores, em representação da EDP, foi o escritório de advocacia CMS Rui Pena & Arnaut. José Luís Arnaut, dirigente social-democrata e antigo ministro adjunto de Durão Barroso, que acumula com as funções de advogado, com as de presidente do conselho de administração da ANA — Aeroportos de Portugal e membro do conselho de administração do conselho consultivo internacional do Goldman Sachs, garantiu ao PÚBLICO que não esteve envolvido, mas sim Rui Pena.
O jogo do empurra não ficou por aqui. A Odebrecht Portugal remeteu os esclarecimentos para a construtora Lena, “a líder do consórcio”. E os serviços jurídicos da empresa de Leiria asseguraram desconhecer qualquer negociação reservada envolvendo a obra de Trás-os-Montes. Até informaram que iam clarificar o equívoco e que voltariam a ligar para o PÚBLICO, o que não se verificou.
Antes do pagamento da verba extra acordada entre advogados, já as construtoras tinham pedido para serem ressarcidas por trabalhos a mais. Nessa altura reivindicaram cerca de 90 milhões de euros: uma parte foi tida como válida pela EDP e outra foi recusada por ser responsabilidade do consórcio.
Mexia pede auditoria para se precaver
O reconhecimento de que podem ter existido práticas irregulares entre a EDP e as construtoras Lena e Odebrecht foi assumido por António Mexia quando, na qualidade de presidente executivo (CEO) da EDP, encarregou a EY Portugal (ex-Ernst & Young) de fazer uma auditoria externa ao plano de barragens da EDP, com ênfase na infra-estrutura do Baixo Sabor, um investimento relevante e oneroso.
Nas contas da EDP, o investimento foi contabilizado em torno dos 490 milhões de euros, mas disparou para 760 milhões no fecho de contas. Deste total, mais de 80% entraram nos cofres das empreiteiras ao abrigo do contrato. Já os 270 milhões de euros de acréscimo incorporam o adicional de 20 milhões (7,5% do aumento) regularizados em 2017 junto da Odebrecht e da Lena, bem como as outras compensações exigidas pelas empreiteiras, designadamente pelo período inicial da paragem da obra em que o estaleiro esteve montado e os trabalhadores foram remunerados.
Ao PÚBLICO, fontes não oficiais da EDP confirmaram que o pedido de auditoria à EY foi uma deliberação de Mexia, que não passou pela comissão executiva e que formalmente, até ao final da semana passada, desconhecem se o trabalho produziu conclusões.
Já segundo a EDP, “as auditorias internas e externas que foram solicitadas (...) já se encontram concluídas”.
O pedido de auditorias seguiu-se à confirmação, em Junho de 2017, por parte do Ministério Público de que tinha aberto investigações (na sequência de uma queixa-crime apresentada pela organização ambientalista GEOTA) à construção da Barragem do Baixo Sabor, por suspeitas de corrupção e de subornos. E que as autoridades analisavam os acordos assinados em 2007 entre José Sócrates e a EDP, que alargaram a concessão de 27 barragens à EDP, sem concurso público.
Os inquéritos judiciais à EDP incluem ainda as designadas “rendas excessivas” da energia, o que culminou já na constituição de sete arguidos, sendo um deles António Mexia, suspeito dos crimes de corrupção activa e passiva e de participação económica em negócio. Em síntese: é a proximidade de Mexia a José Sócrates e ao seu ex-ministro da Economia, Manuel Pinho, que está debaixo dos holofotes das autoridades. Ao PÚBLICO, fonte da PGR explicou que “o designado processo dos CMEC [custos de manutenção do equilíbrio contratual] é passível de consulta”, enquanto o que está associado aos investimentos nas barragens “se encontra em segredo de justiça”.
Uma barragem com detalhes explosivos
Mas não foram apenas os sucessivos atrasos na construção do projecto de Trás-os-Montes e o aumento do preço global, em cerca de 55%, a tornar o investimento na bacia do Douro mediático. Foram os detalhes de um projecto que, em 2010, Sócrates incluiu no Plano Nacional de Barragens, facilitando o acesso da EDP a volumosos benefícios. A Barragem do Baixo Sabor é considerada o armazém de energia do rio Douro e o maior centro de produção hidroeléctrica do país.
Depois de, em 2004, o Governo ter anunciado a intenção de avançar com a obra, e de esta ter sido apresentada em 2007 por José Sócrates, a EDP abriu um concurso público internacional para seleccionar o construtor. E ganhou a Lena, uma média empresa de Leiria sem experiência ou competências técnicas para a levar por diante. As dúvidas foram sanadas quando apareceu associada à Odebrecht (que em Portugal opera através da Bento e Pedroso), que na prática assumiu a chefia.
A 2 de Junho de 2008, a imprensa económica citava fonte da EDP a justificar a vitória da Lena na licitação internacional por ter apresentado a proposta mais competitiva: “Duzentos e cinquenta milhões.” A 30 de Junho do mesmo ano, na sequência da cerimónia de lançamento da primeira pedra, a Lena emitiu um comunicado a informar que a encomenda seria executada em “60 meses”: estaria concluída a 30 de Junho de 2013. Mas só foi inaugurada em 2016. Questões ambientais, exigências dos municípios de ajustamento ao projecto e investimentos na linha ferroviária foram as razões racionais para protelar prazos.
Nessa época áurea das relações luso-brasileiras, a Lena e a Odebrecht atravessavam um período de prosperidade, sustentado nas suas ligações ao poder político de ambos os países. Em Portugal, a proximidade da Lena ao ex-primeiro-ministro José Sócrates é conhecida. O Ministério Público acusa Sócrates, entre outras coisas, de ter promovido contactos e reuniões com políticos e gestores com o propósito de beneficiar o grupo de Leiria (usando como testa-de-ferro o amigo Carlos Santos Silva, então gestor da Lena). As autoridades admitiam ainda que um dos principais rostos do Grupo Lena, Joaquim Barroca Rodrigues, estava autorizado a movimentar as contas na Suíça que alegadamente pertenciam a José Sócrates.
No Brasil, o ex-ministro Antonio Palocci considerou que o núcleo duro do ex-Presidente Lula da Silva celebrara um “pacto de sangue” com a Odebrecht, que, para além de o ter subornado, destinou ao Partido dos Trabalhadores 81,1 milhões de euros em troca de favorecimento em contratos. Em 2013, o ex-Presidente esteve em Lisboa, financiado pela Odebrecht, para apresentar o “livro” de Sócrates. A construtora justificou-se então com o facto de esta ser uma prática habitual: também pagava viagens ao ex-primeiro-ministro espanhol Felipe González.
Mexia encontra-se com Marcelo Odebrecht
Quando a 11 de Setembro de 2013, numa viagem ao Brasil, António Mexia avisou os amigos de que não podia estar presente no Museu Histórico Nacional, no centro da capital paulista, onde ia ser agraciado pela Câmara Portuguesa de Comércio e Indústria do Rio de Janeiro, ninguém se surpreendeu.
Afinal, em vez disso, Mexia ia encontrar-se com o poderoso presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht, que bem conhecia. O homem que, durante os governos do Partido dos Trabalhadores, multiplicara por seis a facturação da construtora, passando de 17,3 biliões de reais, em 2003, para 107,7 biliões, em 2014 (segundo a revista Veja). Para mais, a EDP tinha negócios relevantes com a Odebrecht; com a construção da Barragem do Baixo Sabor há dois anos encalhada, nada mais natural do que se encontrarem.
E foi assim que, em vez de Mexia, apareceu a representar o presidente da EDP Ana Maria Fernandes, então a presidir à EDP Brasil. Na sala onde a Câmara Portuguesa de Comércio e Indústria do Rio de Janeiro celebrava 102 anos com a presença de 500 convidados, encontrava-se um lote de notáveis: o ex-ministro Miguel Relvas, Nuno Fernandes Thomaz, da CGD, Fernando Teles, do Banco BIC, e a própria Ana Maria Fernandes. Todos seriam, como Mexia, agraciados durante o jantar.
O porta-voz de António Mexia não confirma o encontro, resposta que surpreendeu quem esteve no evento, que em declarações ao PÚBLICO se interroga: “Ai não esteve? Mas foi o que ele nos disse para justificar a ausência no jantar onde ia receber o prémio.”
O que Mexia estava longe de imaginar é que daí a dois anos, a 19 de Junho de 2015, o juiz Sérgio Moro decretaria a prisão do empresário brasileiro Marcelo Odebrecht, por estar no epicentro do esquema de sobrefacturação em grandes contratos.
Depois de começar por se declarar inocente, para sobreviver, Marcelo Odebrecht acabou por identificar a cadeia de comando do esquema de corrupção, o que lhe permitiu uma condenação de 19 anos de prisão, mas a cumprir domiciliarmente.
No quadro de um acordo de delação premiada, Marcelo Odebrecht revelou ao juiz Sérgio Moro que a Odebrecht tinha um departamento com funções específicas: pagar e contabilizar subornos, branquear capitais. O dinheiro que saía do denominado “Sector de Operações Estruturadas” destinava-se a garantir que a empreiteira acedia aos grandes negócios, sempre com cariz público, quer no Brasil quer noutras geografias.
No seu site oficial, a Odebrecht apresenta-se como estando na América do Sul, na América Central, nos EUA, em África e no Médio Oriente. A excepção a estes mercados é Portugal, onde adquiriu há 30 anos a Bento e Pedroso (agora Odebrecht), apanhada na Operação Monte Branco a branquear 6,1 milhões de euros.
Foi do sector-sombra da Odebrecht, onde a contabilidade paralela era averbada, que chegou a pista que interessa às autoridades portuguesas que investigam a EDP, a Lena e José Sócrates.
Em 2016, segundo relatos do jornal Globo e da revista Veja, a responsável pelo Sector das Operações Estruturadas, Maria Lúcia Tavares, começou a ajudar a equipa de Sérgio Moro a levantar a ponta do véu, contando que geria seis contas e que de uma, da “Paulistinha”, foram levantados 60 milhões de reais para pagar luvas em duas operações internacionais: no Peru (onde decorre uma investigação designada de Lava Dólar) e em Portugal.
A funcionária narrou mais. Entre 25 de Março e 9 de Abril de 2015, a conta “Paulistinha” contabilizou seis transferências, no total de 750 mil euros, relacionados com subornos pagos no quadro da Barragem do Baixo Sabor. Na sequência, Sérgio Moro repassou a informação para as autoridades portuguesas, que as incluíram, segundo o Observador, na Operação Marquês.
Publicitário preso contacta António Mexia
As averiguações desencadeadas em Portugal e no Brasil expuseram uma teia de relações promíscuas. Um dos nomes monitorizados por Sérgio Moro foi o do ex-publicitário do PSD André Gustavo Vieira da Silva, detido no final de Julho de 2017 por corrupção no quadro do Lava-Jato. André Gustavo (como é conhecido) ocupou, entre 2010 e 2016, um lugar central como estratego de marketing do PSD, sendo-lhe a ele atribuídos os méritos nas vitórias eleitorais do PSD.
Da caixa de correio de André Gustavo terá saído, já depois de Pedro Passos Coelho ter assumido a chefia do Governo em 2012, um email a propor a agilização dos contactos entre a EDP e as empreiteiras Odebrecht e Lena, num momento em que a obra do Baixo Sabor marcava passo.
A mensagem electrónica associa quadros do grupo EDP e da EDP Produção, que constrói e explora o plano de barragens hidroeléctricas, sob orientação de António Mexia. Confrontado pelo PÚBLICO sobre a existência do email, o administrador da EDP Produção, António Ferreira da Costa, sugeriu que, “dada a matéria em questão”, se contactasse a secretária-geral da EDP, Teresa Pereira, que não respondeu ao telefonema. Um outro responsável da EDP, quando contactado sobre o mesmo tema, remeteu o assunto para a área de comunicação da EDP, ironizando: “Fale com o departamento Goebbels”, numa referência ao ministro da propaganda de Adolf Hitler.
E acabaria por ser do gabinete de comunicação da EDP que chegaria a explicação: “A EDP desconhece os emails e não faz parte do processo.”
Em 2015, António Mexia acabou por encarregar o administrador Rui Teixeira de fechar o dossier do Baixo Sabor.
Teia promíscua liga os dois lados do Atlântico
No contexto do trabalho com o título “Os bastidores de um sobrevivente, Mexia a caminho da EDP”, de Dezembro de 2017, o PÚBLICO tinha já interpelado o CEO da EDP sobre a sua relação com André Gustavo. Mexia afiançou então que nunca se reunira ou tivera contactos com o lobbyista, apenas se haviam cruzado em acontecimentos sociais. O PÚBLICO apurou outros factos que fonte oficial da EDP mais tarde reconheceu.
Em 2008, quando se ficou a saber que o consórcio Lena/Odebrecht tinha ganho o concurso público de execução da Barragem do Baixo Sabor, André Gustavo fizera uma primeira tentativa de aproximação à EDP. Por email, o publicitário dirigiu-se a António Mexia a propor-se para facilitar a entrada da EDP na Light, a distribuidora de electricidade do Rio de Janeiro, uma operação a necessitar de financiamentos e autorizações estatais.
A 7 de Maio de 2008, António Mexia reencaminhou a mensagem para o chefe de gabinete João Paulo Mateus, que, por sua vez, um dia depois, a remeteu para Miguel Setas, administrador com responsabilidades na operação da EDP no Brasil, para que este avaliasse se o teor interessava. A transacção não se concretizou.
“Tratou-se apenas de um email, e dali não resultou qualquer decisão”, afiança fonte oficial da EDP, e não confirmou os encontros tidos entre Mexia e André Gustavo no piso intermédio da entrada do Hotel Marquês de Pombal, em Lisboa, onde funciona o bar, e que servia de “escritório” ao publicitário.
É expectável que as mensagens electrónicas de André Gustavo possam acabar interceptadas pelo Ministério Público quando este acabar de analisar a extensa documentação recolhida durante as buscas à EDP, a 2 de Junho de 2017.
Por mera coincidência, um mês depois de a Policia Judiciária ter entrado na sede da EDP, no Brasil, a 27 de Julho do ano passado, a Polícia Federal prendia André Gustavo, quando este se preparava para embarcar no aeroporto do Recife, com destino a Brasília. No mesmo dia, o ex-presidente do Banco do Brasil (e da Petrobras) Aldemir Bendine seria também detido com a viagem de avião para Lisboa comprada, mas sem bilhete de regresso.
Na altura, já Sérgio Moro tinha comprovativos de um outro episódio: entre 17 de Junho e 1 de Julho de 2015, saíram também da Odebrecht três milhões de reais (767 mil euros) com destino a André Gustavo. A quantia foi repartida em três tranches de dinheiro vivo.
A 21 de Novembro de 2017, o ex-publicitário do PSD confirmou os factos e justificou-os: recebeu os três milhões como remuneração de trabalhos de “consultoria” à construtora para ajudar a desbloquear, junto do Banco do Brasil, uma operação da Odebrecht de 1,7 biliões de reais (450 milhões de euros). E tudo porque o ex-presidente do Banco de Brasil (e da Petrobras) Aldemir Bendine condicionava a renegociação do crédito em troca de luvas no valor de 17 milhões de reais, o correspondente a 1% do contrato.
A cena passa-se em tribunal, com André Gustavo a relatar o que combinara com Marcelo Odebrecht, antes de Sérgio Moro ter enviado o empresário para a cadeia.
As verbas ilícitas foram entregues a “um taxista amigo”, por um funcionário do departamento de “operações estruturadas” da Odebrecht, com nome de código “Cobra”, e mediante a apresentação das senhas “oceano”, “lagoa” e “rio”. Depois, “o taxista amigo” de André Gustavo foi levar o dinheiro a um apartamento alugado pelo seu irmão, António Carlos Vieira da Silva. O ex-publicitário do PSD explicou que parte dos três milhões que recebeu da Odebrecht foram usados para saldar uma dívida de um milhão de reais a um amigo. A restante verba destinou-se ao banqueiro Bendine: 600 mil reais em espécie, que estavam guardados no seu apartamento, foram entregues “numa bolsa” durante um almoço em São Paulo. A segunda tranche, de 350 mil reais, foi recebida por Bendine dentro de um automóvel à entrada do aeroporto internacional de São Paulo/Congonha. André Gustavo avançou ainda que pagou a despesa da estada da família de Bendine em Nova Iorque.
A ligação de André Gustavo ao Lava-Jato
A conexão de André Gustavo ao Lava-Jato é exposta pela primeira vez em Março de 2016, quando o PÚBLICO revelou que a Polícia Federal do estado do Paraná solicitara ao Ministério Público pormenores sobre a sua actuação em território nacional.
Foi Miguel Relvas, de quem André Gustavo se tornou amigo, que, em 2010, contrata a Arcos Propaganda, de que o pernambucano é sócio, para ser consultora de marketing do PSD. Um acordo que vigorou, pelo menos, até 2016. Relvas explicou então que o lobbyista brasileiro tinha uma ligação forte ao “professor Labareda, grande conhecedor do marketing político”, e que foi isto que contribuiu para que o PSD lhe confiasse a estratégia eleitoral legislativa de 2012 que deu a vitória a Pedro Passos Coelho.
Todavia, foi Luís Filipe Menezes, o ex-autarca da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, que abriu as portas em Portugal ao lobbyista. A 27 de Abril de 2016, em entrevista ao Expresso, na qualidade de ainda publicitário do PSD, André Gustavo confiava que privava há mais de vinte anos com Luís Filipe Menezes (ex-presidente do PSD entre 2008 e 2009) e que tinha sido através deste autarca que conhecera o deputado Marco António Costa, que, por seu turno, o apresentou a Relvas. Os dois ex-ministros de Passos Coelhos.
Por sua vez, em 2011, a Visão adiantava que Relvas passara férias na casa de André Gustavo, em Porto Galinha, onde Menezes tinha comemorado a eleição como líder da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia.
Em 2016, Relvas “confirmou” que vivia em Lisboa num apartamento do publicitário e que pagava a renda “anualmente”, e que esse rendimento era “declarado em Portugal” por André Gustavo. De acordo com o Correio da Manhã, o apartamento pertenceu a Vítor Santos, conhecido como “o Bibi do Benfica”, e chegou à posse do publicitário através de uma permuta.
As polémicas em torno de André Gustavo, numa altura em que este trabalhava para o PSD, chamaram pela primeira vez a atenção em Agosto de 2015, quando o lobbyista foi a Brasília depor perante a Comissão Parlamentar de Inquérito aos financiamentos ilícitos concedidos pelo banco estatal BNDES a empresas e políticas.
No mundo dos negócios, as relações “amigáveis” são muitas vezes ancoradas em interesses partilhados, e os deputados brasileiros questionaram André Gustavo, cuja prisão foi agora confirmada por Sérgio Moro, sobre a relação comercial da Arcos (contratada pelo PSD) com o ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores Delúbio Soares, seu padrinho de casamento, e condenado no Mensalão.
Nada impediu o PSD de manter o lobbyista a chefiar a campanha eleitoral de 2015. Por tudo o que veio a saber-se dali para a frente, uma fonte do CDS-PP ironizou ao PÚBLICO: “Nunca percebi o entusiasmo do Passos Coelho com o André Gustavo, que dizia coisas razoáveis, mas não era um iluminado.” Sobre possíveis movimentações da EDP, da Odebrecht e da Lena, articuladas com o Governo anterior, o dirigente centrista garantiu: “Se o publicitário se envolveu, foi à margem do Governo, pois as nossas relações com essas empresas foram sempre institucionais.”
Este artigo foi alvo de um direito de resposta