Itália: a hora dos negócios políticos
Como fazer um governo com partidos anti-sistema? Os analistas maginam uma saída: um acordo entre o Partido Democrático e o Movimento 5 Estrelas. É um cenário que deixa o PD num dilema. Sobe, entretanto, a cotação dos “grillini”
Contados os votos, recomeça a política. Mas, desta vez, em termos quase surreais: como fazer um governo após a vitória dos partidos anti-sistema? E como vão estes posicionar-se no “sistema”? Toda a discussão se centrou rapidamente na perspectiva de um acordo entre dois “inimigos” de ontem: o Movimento 5 Estrelas (M5S) e o Partido Democrático (PD). Deve o “vencido” PD apoiar a subida ao poder do “vencedor” M5S, viabilizando a constituição de um governo? Ou, pelo contrário, deve o PD assumir o estatuto de oposição, tentando regenerar-se após uma derrota que põe em causa o seu futuro? É o cerne da questão.
Para perceber o dilema, é indispensável recapitular o cataclismo provocado pelas eleições de 4 de Março. Os dois partidos anti-sistema, o M5S, de Luigi di Maio, e a Liga, de Matteo Salvini, somaram mais de 50% dos votos. Consequência: é aritmeticamente impossível formar uma maioria sem, pelo menos, um deles. E também nenhum deles pode governar sozinho. Tendo Salvini — ainda aliado de Berlusconi — muito mais anticorpos do que Di Maio, dado o seu posicionamento na extrema-direita, a maioria dos analistas inclina-se para uma solução com base no M5S. As eleições tornaram também caduco o antigo modelo bipolar — uma coligação de centro-esquerda ou uma de centro-direita (ver PÚBLICO de 7 de Março).
A ironia é que, largamente batido, o PD passa a ser o “fiel da balança”. Está sob uma enorme pressão para que facilite a formação de um governo.
O jogo de Renzi
Di Maio não mostra as cartas e declara querer “falar com todos”. Matteo Renzi, secretário do PD, na ambígua situação de “demissão suspensa”, opõe-se frontalmente a um acordo com o “5 Estrelas”. A sua proposta é: “Obriguemos o M5S e a Liga a formarem um governo em conjunto.” É sabido que tal hipótese não interessa a Di Maio nem a Salvini, concorrentes entre si e com fortes divergências. De resto, Salvini não está interessado em ser o vice de Di Maio. Prefere aguardar na oposição e tentar recuperar uma parte do eleitorado de Berlusconi. Faz uma ameaça velada: aliar-se ao M5S para fazer uma nova lei eleitoral e precipitar eleições.
Dentro do PD, há fortes resistências a um acordo com o M5S, “que [os] insulta há anos”. Muitos militantes temem que seja o M5S em ascensão a capitalizar um acordo, acelerando o declínio do PD e ocupando mais uma parte do seu espaço. Renzi, embora numa posição de fraqueza dentro do partido, explora esse malestar. A sua “demissão suspensa” tem um objectivo preciso: manter o controlo de todo o período de consultas políticas. O “não” ao M5S é para ele estratégico. Neste momento são muito tensas as suas relações com o primeiro-ministro, Paolo Gentiloni, e quase todo o Governo. “Pesos-pesados” do PD mantêm a ambiguidade e exigem como prioridade o afastamento de Renzi. Querem separar as duas questões, a do líder e a da escolha estratégica. Mas Sergio Chiamparino (PD), governador do Piemonte, diz abertamente que é preciso “abater os tabus” em relação ao M5S.
Mario Calabresi, director do La Repubblica, não esconde a hostilidade à aliança PD-M5S, excepto se Di Maio aceitar ficar fora do executivo. Outros argumentam que o M5S precisa do PD, o que deixaria a este último uma boa margem de manobra para impor as regras do jogo e as bases do programa de governo, designadamente na questão europeia e em matéria económica.
Os “novos fatos” do M5S
Muita coisa mudou no dia 4 de Março, a começar pela apreciação do M5S. “A classe dirigente italiana já está a subir para o carro do vencedor, mesmo antes de este se começar a mover”, ironiza Luca Cordero de Montezemolo, antigo CEO da Ferrari e expresidente da Confi ndustria, a associação patronal italiana. Declarou Vincenzo Boccia, actual “patrão dos patrões”: “Os ‘5 Estrelas’ não metem medo, nós avaliamos os procedimentos e estamos a falar de partidos democráticos.”
Também Pascal Lamy, ex-director da Organização Mundial do Comércio (OMC), desdramatiza a vitória do M5S, “que é muito diferente da Frente Nacional”, de Marine Le Pen.
Ao contrário, o antigo primeiro-ministro Mario Monti avisa quanto à economia: “Se se introduzissem o rendimento de cidadania [do M5S] e a fl at tax [imposto único sobre o rendimento, de Salvini] ninguém protestaria. Mas seria o ‘massacre dos inocentes’, dos italianos de amanhã que fariam bem em não nascer, para não serem estrangulados pela dívida pública que descarregaríamos sobre eles.” E não poupa os políticos: “A política italiana desacreditou-se para lá de todos os limites.”
O PD acaba de perder mais 15% ou 20% dos seus eleitores para o M5S, um “partido pós-ideológico” que, com isso, se desloca para um território mais à esquerda. Uma sondagem Swg indica que 35% dos que votaram em 1987 no Partido Comunista Italiano — antes da sua dissolução — escolheram agora o voto no M5S. A função pública, designadamente os professores, passam de armas e bagagens para os “grillini”, o partido “que [os] escuta”. O M5S passou a ser o grande partido popular do Sul e está homogeneamente distribuído por todo o território. Ao contrário, o PD acaba de perder os últimos “bastiões vermelhos” e vê drasticamente reduzida a sua base eleitoral entre os operários e na classe média baixa. É a classe média alta que mais propensão tem para votar PD.
Uma oportunidade?
O politólogo Piero Ignazi põe em causa a qualifi cação do M5S como “populista”, embora com muitos “traços populistas”. Mas aponta duas diferenças em relação aos outros populismos. “A primeira diz respeito ao primado da legalidade: para os ‘grillini’, é a lei que deve governar.” Em segundo lugar, ao contrário de Salvini ou de Le Pen, “o M5S não fala em nação e povo, mas refere-se sempre ao cidadão, o que é um princípio liberal”. É um partido em evolução e ainda sem uma hierarquia interna.
Saiu esta semana mais um livro sobre o tema: Popolocrazia. La Metamorfosi delle Nostre Democrazie (Laterza), dos politólogos Ilvo Diamanti e Marc Lazar. “Na Itália vence o Movimento 5 Estrelas, o estandarte dos anti-sistema.” Mas escrevem na apresentação do livro: “Os populismos são uma febre, não são a doença. Põem o problema do funcionamento da democracia e isto pode forçar-nos a melhorar os nossos procedimentos democráticos. Poderemos, em definitivo, considerá-los uma oportunidade.”
Ficamos à espera de saber como vai acabar o grande salto no escuro do 4 de Março.