Terapias alternativas: quando as portarias substituem as provas
É por causa da medicina baseada na ciência que hoje vivemos mais e melhor.
Foi publicada no dia 9 de Fevereiro no Diário da República uma portaria (45/2018) que regula os requisitos das licenciaturas em medicina tradicional chinesa. É mais uma peça de uma avalanche legislativa que começou em 2003 e que ganhou particular dinamismo a partir de 2013, no governo de Passos Coelho. O que esta legislação faz é colmatar a falta de provas científicas de eficácia e segurança de várias terapias alternativas, da homeopatia à medicina tradicional chinesa, substituindo-a por portarias e decretos-leis. Permite aos terapeutas alternativos pendurarem nas paredes dos seus consultórios cédulas profissionais passadas pela Administração Central de Saúde, o que induz o público no erro de pensar que estas têm fundamentação científica. Mas estão longe de a ter. Tem inteira razão a Ordem dos Médicos, que publicou um vigoroso protesto.
A medicina tradicional chinesa assenta numa filosofia pré-científica. Também existe uma medicina ocidental antiga, que não é científica. Cinco séculos antes de Cristo, o grego Hipócrates defendeu a teoria dos quatro humores corporais: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Para o romano Galeno, no século II, que acreditava na teoria de Hipócrates, havia dois tipos de doentes: os curáveis e os incuráveis. Os curáveis, dizia ele, curava-os a todos, enquanto os incuráveis morriam todos. Nos séculos XVI e XVII, Hipócrates e Galeno começaram a ser postos em xeque. Com o surgimento da ciência moderna, baseada na observação, na experiência e no raciocínio, derrubou-se a ideia de que a validade do conhecimento assenta na sua antiguidade. No domínio da geografia, apurou-se, logo no século XV, que muito do conhecimento clássico estava pura e simplesmente errado. Para Aristóteles as regiões equatoriais eram demasiado quentes para serem habitáveis, mas as viagens dos portugueses, que passaram o equador em 1475, mostraram que Aristóteles estava equivocado (já agora, Aristóteles também não acertou no número de dentes da mulher, decerto porque nunca pediu à sua para abrir a boca!). Galileu escreveu, em 1615, que tinha descoberto, com o seu telescópio, factos inteiramente contrários às convicções dos filósofos e que, por isso, eles deviam mudar de opinião.
Já no século XX foi ultrapassado o paradigma do médico guru, cujo conhecimento emanava da sua personalidade e da sua experiência, que não podia ser questionado. A moderna medicina, baseada nas provas, assenta numa ideia muito simples: deve ser avaliada a eficácia e a segurança de todos os tratamentos usando métodos estatísticos seguros. Uma afirmação não é verdadeira porque pessoas muito importantes a defendem ou porque está escrita em livros muito antigos, mas sim porque é provada. Existe uma hierarquia de provas, em que no nível mais baixo está a publicação de um caso clínico (que nada prova) e no mais alto as revisões sistemáticas da literatura médica, que retiram conclusões de todos os ensaios clínicos bem feitos acerca de um determinado tratamento. É por causa da medicina baseada na ciência que hoje vivemos mais e melhor.
Os terapeutas alternativos, quando se vêem confrontados com os maus resultados das suas práticas, invocam, tal como Galeno, uma aplicabilidade retrospectiva, restringindo-a aos casos em que aparentemente resultaram. Alguns deles, pretendendo ser mais sofisticados, alegam que também têm provas, socorrendo-se de uns poucos ensaios clínicos, escolhidos a dedo, por vezes mal feitos, e ignorando todos os outros. Mas, se estão mesmo convencidos de que é verdade aquilo que afirmam, aqui fica o desafio: abdiquem de todos os regimes de excepção e aceitem aprovar os tratamentos alternativos com a mesma exigência que é necessária para introduzir medicamentos ou tratamentos normais no mercado. Podem não gostar, mas isso é a medicina científica. O problema é que, se o aceitassem, seria obviamente o fim das suas terapias alternativas. Pois como se chama uma medicina alternativa que provou ser segura e eficaz? Simplesmente medicina.
A recente portaria das licenciaturas em medicina tradicional chinesa usa uma linguagem pré-científica que não corresponde ao entendimento actual dos seres vivos. Fala de coisas misteriosas como yin e yang, qi, ramificações jing lu, síndromes dos zang fu, nas quatro camadas e nos três aquecedores. Por redução ao absurdo poderíamos dizer que essas coisas existem porque constam da portaria 45/2018. Ora isto não faz qualquer sentido: é a ciência que deve informar o poder político e não o contrário. Cientistas e divulgadores científicos, autores do recente livro A Ciência e os seus Inimigos