Católicos recasados devem ser aconselhados a abster-se de ter relações sexuais
Cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, aconselha a que, nos casos em que não possa ser declarada a nulidade do casamento anterior, deve ser proposto ao casal em situação irregular viver sem a prática de relações sexuais.
Os católicos recasados podem “em circunstâncias excepcionais” aceder aos sacramentos, mas a Igreja não deve deixar de lhes propor “a vida em continência”, isto é, sem a prática de relações sexuais. A orientação está contida no documento que o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, publicou anteontem, com algumas normas para regular o acesso aos sacramentos de pessoas em “situação irregular”, isto é, àquelas em que ao matrimónio sucedeu a ruptura e um casamento civil.
Nos casos excepcionais em que “após um longo caminho de discernimento” se entenda que a Igreja deve reabrir as portas a sacramentos como a comunhão e a confissão, D. Manuel Clemente aconselha que estes sacramentos se realizem “de modo reservado, sobretudo quando se prevejam situações conflituosas”.
É a resposta do Patriarcado de Lisboa à exortação apostólica Amoris Laetitia com o que papa Francisco rematou os dois sínodos sobre a família que, em Outubro de 2014 e 2015, acompanharam o esforço claro da Igreja no sentido de uma maior abertura às novas formas de estar em família. Naquela exortação, publicada em Abril de 2016, o Papa desafiou as dioceses dos vários países a porem de parte “a fria moralidade burocrática” e a serem misericordiosas com quem se divorciou ou vive uma união fora do casamento. E, porque “o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia”, Francisco aconselha, no já famoso rodapé 351 daquele documento, sobre o caminho para a reintegração: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos.”
Na leitura que faz deste documento, quase dois anos depois, D. Manuel Clemente chama a atenção para o “carácter restritivo” e “condicional” desta frase, patente nas expressões “em certos casos” e “podia”. E enfatiza assim que a reintegração dos católicos em situação irregular “não acaba necessariamente nos sacramentos”, podendo traduzir-se numa maior presença na comunidade e na participação em grupos de oração ou reflexão.
Naquilo a que chama as “alíneas operativas”, Manuel Clemente propõe assim que se verifique a especificidade de cada caso, que se pondere a apresentação ao tribunal diocesano quando haja dúvidas sobre a validade do matrimónio anterior e, quando a validade se confirma, que não deixe de se “propor a vida em continência na nova situação”.
“É contra a natureza humana”
Esta última alínea deveria pura e simplesmente ser retirada deste texto, na opinião de Anselmo Borges. “Não faz sentido admitir que estão casados, por um lado, e pedir-lhes que não tenham vida sexual, por outro. É contra a natureza humana”, critica o teólogo e padre da Sociedade Missionária Portuguesa. Lembrando o princípio moral segundo o qual “ao impossível ninguém é obrigado”, Anselmo qualifica tal frase como “catastrófica” num documento que se propõe orientador.
A possibilidade de os sacramentos serem vividos “de modo reservado” é algo com que Anselmo Borges também antipatiza. “Acho que isso pressupõe comunidades cristãs infantilizadas, incapazes de compreender e integrar pessoas que tiveram dificuldades. Faz-me lembrar o que acontecia com os padres que pediam dispensa: podiam casar-se desde que numa paróquia onde não fossem conhecidos. Por amor de Deus, ou as pessoas podem aceder aos sacramentos ou não podem!”, exaspera-se.
No caminho de discernimento, “longo, paciente e feito de pequenos passos” e que não deve nunca “desistir da proposta matrimonial cristã na sua inteireza”, o cardeal-patriarca socorre-se das palavras do ex-cardeal vigário do Papa para a diocese de Roma Agostino Vallini, para atirar a decisão sobre o acesso ou não aos sacramentos para o confessor ou guia espiritual dos candidatos: “Não pode ser senão o confessor, a certa altura, na sua consciência, depois de muita reflexão e oração, a ter de assumir a responsabilidade perante Deus e o penitente, e pedir que o acesso aos sacramentos se faça de forma reservada.”
“Casos excepcionais”
Segundo o cardeal-patriarca, que fundamenta a sua posição no cruzamento de textos de João Paulo II, Bento XV e Francisco, poderão incluir-se nos “casos excepcionais” de acesso aos sacramentos aqueles em que existam “limitações que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade” na ruptura conjugal e aqueles em que se considere que a recusa da Igreja prejudicaria os filhos da nova união.
De fora desta possibilidade ficam desde logo os casos “de uma nova união que vem de um recente divórcio”, bem como as situações em que alguém falhou reiteradamente nos seus compromissos familiares ou faça apologia ou ostentação da sua nova situação “como se fizesse parte do ideal cristão”. Excluídos ficam desde logo também os que praticaram “injustiças não resolvidas” no primeiro casamento, casos em que “o acesso aos sacramentos é particularmente escandaloso”.
Tudo sopesado, Anselmo Borges considera que este “é um texto muito mais restritivo do que as possibilidades abertas pelo papa Francisco”, concordando embora com a necessidade de defender “o ideal de família estável, baseada no amor fecundo, que é a melhor instituição para ter filhos e educá-los na estabilidade de valores”. O que a Igreja não deve, segundo o teólogo, é continuar a “infantilizar a consciência das pessoas”, o que implica que não deve negar-lhes a confissão e a comunhão “no quadro de um novo amor e desde que as questões de justiça para com os filhos do primeiro casamento estejam defendidas”.
Esta tomada de posição, recorde-se, surge já depois de a Arquidiocese de Braga ter emitido orientações muito claras – e aparentemente mais amplas – quanto aos passos a dar no sentido de readmitir os divorciados e recasados nos sacramentos.