“Não calamos as contradições que existem e que podem tornar-se insanáveis”
Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP desde 2004, fala, nesta entrevista, dos avanços registados nesta legislatura, mas também diz que eles são insuficientes.
Até 2020, pelo menos, Jerónimo de Sousa é a cara do PCP. Só então haverá um congresso que pode, ou não, alterar a liderança do partido. Jerónimo não quer deixar para outrem a decisão de continuar ou sair. Prefere ser ele próprio a tomá-la, ouvindo quem tem à volta. Por enquanto, tudo o que ouve nas ruas é: "Continue". Ao PÚBLICO e à Renascença, o secretário-geral do PCP fala sobre Centeno, sobre Rio, sobre a linha que separa esquerda e direita, a eutanásia e, claro, a luta dos trabalhadores. E avisa: “Não calamos as contradições que existem” e “não se pode estar bem com Deus e com diabo ao mesmo tempo”.
Uma prioridade do PCP parece ser a reforma das leis laborais. Em concreto, o que é que o PCP quer e propõe?
Se me permitem uma introdução, nesta nova fase da vida política nacional, nós valorizamos muito terem sido dados passos adiante, avanços significativos, particularmente no plano dos rendimentos e direitos dos trabalhadores. Esses passos adiante têm o mérito de derrotar a tese de que existiria mais competitividade e desenvolvimento económico com uma política de baixos salários e poucos direitos. Mas simultaneamente não podemos esquecer o carácter insuficiente e limitado desses mesmos avanços.
O que tivemos nestes dois anos foi muita recuperação dos salários na função pública. Mas, recentemente, responsáveis do PS já vieram dizer que não é possível continuar a recuperar salários aí. O PCP aceita isso?
Prefiro constatar e alertar para o facto seguinte: estamos a falar de trabalhadores que há oito ou nove anos não recebem qualquer aumento salarial. É disto que se trata. Defendemos o aumento geral dos salários, quer seja nos privados ou na função pública, por isso entendemos que esta questão da valorização dos salários, designadamente com a evolução do salário mínimo nacional, é uma condição fundamental. Estamos a falar de uma medida inquestionável.
Além da questão salarial, que mais quer o PCP em matéria de direitos laborais?
Uma das questões fundamentais é resolver a desregulação dos horários de trabalho. Alguns conflitos laborais têm a ver com uma intenção clara, particularmente das multinacionais, um objectivo claro da desregulamentação dos horários, seja não reconhecendo os dois dias de descanso semanal, seja por métodos como o chamado banco de horas, seja pelo horário grupal. Não se tem em conta a organização da vida pessoal e familiar dos trabalhadores. Esta é uma questão importantíssima e temos iniciativa nesta matéria.
É o que acontece na Autoeuropa?
Houve um processo tremendista de apontar o tiro para outro alvo quando, na prática, o que se passou foi que uma administração, de uma forma unilateral tentou impor o trabalho ao sábado e a outra parte, de uma forma clara, decidiu que não, tinha o direito e a dignidade suficiente para não defender o trabalho ao sábado na medida em que isso tem consequências tremendas na sua vida. Anda aí na boca do mundo a questão da natalidade e do défice demográfico, mas depois são tomadas medidas que levam a prejuízos familiares e pessoais inaceitáveis. Como se os trabalhadores da Autoeuropa não tivessem inteligência para perceber aquilo que está em causa! São os primeiros a querer que a Autoeuropa continue a produzir em Portugal. Nós, PCP, continuamos a considerar importantíssimo que essa empresa continue a laborar no nosso país. Mas faça-se num quadro de respeito e dignidade por quem lá trabalha.
Que outras propostas o PCP pode vir a apresentar?
Há todo um conjunto de propostas que vão desde a saúde e higiene nos locais de trabalho à questão do combate à precariedade, que é uma chaga tremenda. Registamos o aumento do emprego em Portugal. É um facto. Mas temos de ver a qualidade do emprego. Dois terços dos jovens entram com vínculo precário no mercado de trabalho. A cada posto de trabalho permanente, um contrato de trabalho efectivo. Respeitando a sazonalidade e questões excepcionais.
Precisamente por ter essa posição, o PCP era contra aquilo que veio a ser consagrado através de decreto, por acordo entre o Governo e o Bloco (aumento da taxa social das empresas que têm mais trabalhadores a recidos verdes). O PCP tem outro tipo de propostas a fazer?
Nós não acompanhámos por uma razão simples: com essa proposta pode aumentar-se os encargos das empresas, mas não se acaba com a precariedade nos locais de trabalho. Há muitas empresas que não se importam de pagar mais umas décimas em termos de Taxa Social Única e manter os trabalhadores com vínculos precários. Temos, no plano da concepção, uma diferença em relação ao Bloco de Esquerda e ao PS: classifica-se um trabalhador como precário, mas não há precários, há trabalhadores com vínculo precário. É uma coisa totalmente diferente. É uma concepção de fundo. Há ainda outra questão importantíssima que é a contratação colectiva. É um direito constitucional. Fui sindicalista antes do 25 de Abril e negociava-se a contratação colectiva. Num quadro de relação de forças profundamente desfavorável - em que geralmente eram dois contra um, o governo e a entidade patronal contra o representante sindical -, mas foi encetada antes do 25 de Abril. O contrato colectivo não trata apenas da questão do salário. Trata de direitos, regalias específicas de cada sector. São uma garantia além da lei.
Tem encontrado alguma receptividade por parte do PS?
Naquilo que são declarações públicas, nem por isso. Mas obviamente que, no quadro das relações existentes com o PS, nós fazemos-lhe este desafio, porque a questão dos direitos dos trabalhadores sempre foi uma zona de fronteira entre a esquerda e a direita. Quem se declarar de esquerda tem de ter essa responsabilidade de beneficiar a parte mais débil.
Se o PS não ficar ao lado do PCP nas propostas de legislação laboral conclui-se que o PS não é de esquerda?
Caracterizamos o PS como um partido que muitas vezes praticou uma política de direita. Esta questão do direito dos trabalhadores não é a única coisa que define esquerda e direita, mas é uma zona de fronteira. O que temos vindo a verificar é que, com esta nova fase da vida política nacional, o PS e o Governo PS estiveram disponíveis e abertos para alguns dos avanços referidos. Faremos o registo político em relação a todos os posicionamentos. O PS tem esta responsabilidade. É neste quadro de avanços e de passos positivos que se acentua a contradição.
Esses avanços contribuíram para a ideia de que há paz social, menos greves, os sindicatos parecem mais domesticados. É um sinal de que o PCP tem conseguido influenciar a governação? Ou o ligeiro aumento de contestação levado a cabo pela CGTP mostra que essa influência já não chega?
Ninguém acredite, não pode haver um trabalhador que acredite que em relação à legislação laboral é suficiente ter iniciativa legislativa na Assembleia da República para que as coisas se resolvam. É da história do movimento operário o sindical que os direitos não se dão, conquistam-se.
É por isso que o PCP tem agora uns cartazes, um dos quais mesmo em frente à sede do PS, no Largo do Rato, que diz. "Mais luta, mais força no PCP"?
Não foi de propósito, é uma questão geográfica... Preferimos dizer directamente ao PS [o que há a dizer] em vez de o fazer por cartaz. Damos muito valor à luta, particularmente a luta reivindicativa. Os direitos foram conquistados e não dados. Sempre que houve a intervenção e a luta dos trabalhadores houve avanços significativos. É indispensável essa acção, essa luta.
Vamos contar com mais luta da parte do PCP e da CGTP?
Isso não se decreta. Não é porque o Comité Central decide que deve haver mais luta que vai haver mais luta, não é isso. O que o PCP faz é chamar a atenção, mobilizar consciências e energias para a necessidade de dar resposta a problemas concretos.
Até que ponto haverá mais luta e mais actividade do PCP à medida que nos vamos aproximando de 2019?
Primeiro vamos ter a batalha das eleições para o Parlamento Europeu e só a seguir as legislativas, mas o que nós estamos a fazer neste momento é a assumir o compromisso que fizemos, não com o PS - é um equivoco -, o nosso compromisso de fundo não é com o PS, é com os trabalhadores e com o povo. E nunca foi um resultado eleitoral que nos condicionou ou levou a alteração de fundo deste compromisso que temos com os trabalhadores e o povo, ou que nos levaria a ajeitarmo-nos, a calarmo-nos ou a limitarmos a nossa acção. Neste processo todo, apesar da confusão estabelecida, sempre, mas sempre, o PCP assumiu uma posição independente, votando a favor daquilo que nos parecia positivo, votando contra aquilo que entendíamos negativo. Foi assim durante estes dois anos.
Da forma como está a falar parece que o resultado que o PCP tiver nas legislativas é indiferente.
Não dizemos isso, obviamente. O que estou a dizer é que não nos condiciona. Mas claro que nos batemos pelo reforço da acção, da intervenção e da representação do PCP nas instituições, designadamente na Assembleia da República, com base nesta ideia: ‘olhem para os avanços e façam a comparação com o programa do PS ou com o programa do governo do PS e verificam que muitos desses avanços nas reformas e pensões, na questão do descongelamento das carreiras, nas questões do IRS e da política fiscal, não estão lá'. Isso resultou fundamentalmente da persistência, da acção, da contribuição do PCP. Ou seja, há avanços que o PS sozinho nunca realizaria e realizou porque tivemos esta posição clara. Por isso mesmo, para os trabalhadores e para o povo português, tem uma grande importância dar mais força ao PCP.
Faz, portanto, um saldo positivo destes dois anos e meio ...
Saldo positivo em relação aos avanços. Mas não escondemos, nem calamos, as contradições que actualmente existem e que um dia podem tornar-se insanáveis.
E podem tornar-se insanáveis antes de 2019?
Isso... temos um Governo PS sozinho, o Governo que governa, nós não determinamos as opções e a governação do PS, mas chamamos a atenção. Hoje temos uma política que consideramos dependente dos interesses daquilo que consideramos o grande capital monopolista, temos problemas de fundo como resultado das privatizações, em relação à PT/ Altice ....
Tendo em conta que já disse que este acordo não se repete porque as circunstâncias nunca serão as mesmas, que tipo de acordo de esquerda é que se poderá fazer no futuro?
Não é repetível por razões objectivas, tendo em conta a posição conjunta [assinada em 2015], mas não perderemos nenhuma oportunidade para alcançar avanços que resultem no bem-estar dos trabalhadores e do povo. No quadro da nossa independência e autonomia, estamos em condições para, perante uma situação concreta, encontrarmos essa solução concreta. Ou seja, podemos estar aqui a fazer desenhos e cenários que seriam no mínimo precipitados. Em 2015 houve uma situação concreta, respondeu-se concretamente. Existirá outra, dependendo naturalmente da relação de forças que se crie na Assembleia da República.
Antes, temos pela frente outro Orçamento do Estado. Há quem diga que será o mais fácil desta legislatura. Que avanços vão ser a prioridade do PCP?
Um dos primeiros e que parece uma coisa pouca é efectivar o que foi aprovado no Orçamento do Estado para 2018. Ainda há áreas e questões por cumprir de 2016 e de 2017. Salário mínimo será uma questão incontornável. Não basta falar dos 600 euros, a vida evoluiu. Não quero avançar um valor fixo, mas de certeza será superior aos 600 euros. Outra questão são as carreiras longas contributivas. O Governo e o próprio primeiro-ministro assumiram um primeiro passo, mas garantiram que seriam dados novos passos em relação às pessoas com 40 anos de descontos. Consideramos que o Governo está em falta. Estamos em Janeiro, o anúncio foi feito em Dezembro, entrou Janeiro e não há nenhuma medida palpável. Consideramos uma profunda justiça que quem trabalhou uma vida inteira não deve ser penalizado nas suas reformas e pensões, designadamente com o factor de sustentabilidade…
Que foi criado pelo actual ministro, noutra legislatura ...
Fez bem lembrar. Foi, de facto, um governo do PS que incluiu essa medida profundamente injusta. Pode-se dizer que depois o PSD e o CDS agravaram, mas a cada um aquilo que lhe pertence.