Eleições de risco no país que é o elo fraco do euro
Há cenários impossíveis, como uma vitória do centro-esquerda, e cenários quase seguros, como a vitória de Berlusconi. O que não se sabe é com que aliados — se de direita, se de esquerda. Certo parece o horizonte de ingovernabilidade.
H á poucos anos, a esquerda italiana gritaria: “Socorro, vem aí Berlusconi!” Hoje, graças à emergência do Movimento 5 Estrelas (M5S), de Beppe Grillo, o antiberlusconismo passou de moda. O seu partido, Força Itália (FI), não arranca nas sondagens, mas tem aliados suficientes para bater tanto o Partido Democrático (PD), de Matteo Renzi, como o M5S nas eleições de 4 de Março. O PD tem mais votos, mas não tem aliados, só tem adversários. Mais importante que tudo: o “Cavaliere”, de 81 anos, tornou-se no “árbitro das coligações”. Ninguém poderá governar sem ele e, muito menos, contra ele.
Renzi tem colada a imagem inversa. Depois de ter fulgurantemente vencido quase tudo, foi derrotado no referendo constitucional de Dezembro de 2016. Foi ele que ligou fatidicamente a sua sorte ao resultado do plebiscito. O anti-renzismo é sobretudo a percepção de um líder fraco, e com muito menos popularidade do que Paolo Gentiloni, o primeiroministro do PD. Em 2013 e 2014, Berlusconi estava “fora de jogo”. Anota o politólogo Giovanni Orsina: “Se Renzi tivesse ganho o referendo, não teria havido o regresso de Berlusconi, (...) não haveria espaço para os dois.”
As eleições seriam tranquilas se se disputassem entre os dois “inimigos históricos”. Mas há vários intrusos. O M5S concorre sem aliados. Mas que score obterá? As sondagens apontam-no como o primeiro “partido” de Itália. Quer ser o mais votado e exigir a presidência do Governo. Os “cinco estrelas” mudaram o estatuto, tornaram-se num quase-partido com uma novidade de peso: admitem fazer alianças mal sejam conhecidos os números eleitorais.
Paira uma outra ameaça: uma frente populista juntando o M5S à direita xenófoba da Liga, de Matteo Salvini. Têm muitos pontos em comum, da imigração ao eurocepticismo. Não é um cenário credível, por falta de “números” e porque Berlusconi o impediria aliando-se ao PD.
Se houver um parlamento fragmentado, a “verdadeira eleição” começará na noite de 4 de Março, com o negócio das alianças e onde tudo pode recomeçar do zero. Depende dos números e todos os cenários estarão em cima da mesa — inclusive uma “grande coligação” entre o PD e a Força Itália, de Berlusconi.
Temores europeus
É indispensável uma breve referência ao contexto europeu. São as mais importantes eleições do ano. Os dois maiores países do euro resolveram em 2017 os seus dramas eleitorais. A França, de quem tanto se temia, tem um Presidente forte e “europeu”. Quem ficou em crise foram a esquerda e a direita “tradicionais” e, sobretudo, Marine le Pen, desprovida de estratégia. A Alemanha de Merkel, ainda à procura do novo Governo, resistiu à ofensiva populista.
Qual é o problema da Itália? O terceiro país do euro, com um crescimento económico muito baixo, uma crónica falta de competitividade, uma dívida gigantesca, um sistema bancário frágil, uma grave crise de imigração e um alto desemprego juvenil, exigiria um Governo estável e enérgico. O Financial Times resume a inquietação dos meios políticos e financeiros: “Os cenários prováveis depois do voto são um parlamento sem maioria de governo, uma grande coligação ou um Governo populista com uma atitude muito mais hostil a Bruxelas.” A Itália é o elo fraco do euro. Projecções (falíveis) Serão eleitos 650 deputados e 350 senadores. Segundo a nova lei eleitoral, a maioria, 60%, será eleita pelo método proporcional. Há uma dose de maioritário: 37% dos deputados e senadores serão eleitos em colégios uninominais por método maioritário (é eleito o mais votado).
A dois meses do voto, as sondagens são catastróficas para o PD. Oscila entre 25 e 26% a nível nacional. À esquerda, sofre a concorrência da lista Livres e Iguais (LeU), do presidente do Senado, Pietro Grasso, que visa reunir todos os dissidentes do PD. Com 6 a 8% dos votos, tem como objectivo precipitar a derrota do PD de Renzi. Provocará estragos. Os aliados possíveis de Renzi pouco pesam. Note-se que Grasso se tem mostrado favorável a uma aproximação com os “cinco estrelas”.
Berlusconi aliou-se à Liga, de Matteo Salvini, e aos Irmãos de Itália, de Georgia Meloni, ambos próximos da extrema-direita. Soube focar as atenções não nos 16% da FI, mas nos 36- 38% da coligação da direita. O “Cavaliere” é inelegível por ter sido condenado, mas não é isso que o aflige: será o patrão da coligação.
Os politólogos fazem desde já projecções, sobretudo em relação aos colégios maioritários, onde haverá batalhas tripolares, difíceis de prever. As notícias são más para o PD, que se arriscaria a uma clara derrota do Norte e seria esmagado no Sul. Numa projecção de Roberto Weber, do instituto Ixé, o Norte está nas mãos da direita e o PD poderá ficar a zero na Lombardia, no Piemonte, no Veneto, na Campânia, na Apúlia e na Sicília. “Culpa do tripolarismo mas também de um PD que, a nível nacional, oscila entre 25 e 26%” das intenções de voto”. No centro e nos “bastiões vermelhos”, o PD tem poucos círculos “blindados”.
No Norte, o M5S, na casa dos 27%, sofreria o mesmo efeito corrosivo da tripolarização. Mas está a crescer no Sul, onde disputa a vitória à direita.
O novo rosto do M5S
A última sondagem Ixé, realizada a 18 de Dezembro e publicada na quinta-feira, antevê 292 lugares para a aliança da direita (a maioria absoluta é 316), 167 para o M5S, 138 para o centro-esquerda e 29 para a lista Grasso. Lembre-se que, em 2013, o PD obteve 297 mandatos. O M5S acaba de sofrer uma “reforma”. Passa a ter um “chefe político” de falas mansas, o jovem Luigi di Maio, e um “garante” superior, Beppe Grillo. Apesar de todas as votações online, continua a ser comandado pela empresa Casaleggio Associati, de Davide Casaleggio, filho de Gianroberti Casaleggio, o falecido inventor do movimento. Os novos estatutos reforçam o centralismo.
O M5S sempre se bateu por ter o monopólio da antipolítica e pela recusa de alianças com as forças do “sistema”. Perante o risco de os seus eleitores sentirem o seu voto inútil, admite agora fazer acordos de governo. Esta viragem não é pacífica dentro do movimento, em que muitos exigem o regresso à “pureza” inicial. É um tema que, pela bizarria do fenómeno, exige uma análise à parte. Diga-se apenas que o M5S continua a ser antieuropeísta, mas afastou do programa — tal como a Liga — a ideia de um referendo sobre o euro. Querem impor a Bruxelas — dizem — uma “renegociação dos tratados”.
De resto, os programas eleitorais são muito sumários. Berlusconi fala sobretudo na segurança dos cidadãos (ameaçou entregar a chefia do Governo a um general), na imigração e nos impostos. Todos estão à espera dos “números” para mostrar o jogo.
Os trunfos de Berlusconi
O politólogo Roberto D’Alimonte calcula que, com 36% dos votos, é improvável que a direita consiga ganhar 40% dos mandatos na proporcional e, ainda mais difícil, vencer em 70% dos colégios uninominais. Seria o patamar necessário para alcançar a maioria absoluta nas duas câmaras. “Se a coligação de Berlusconi não vencer, o Governo será feito depois do voto. Neste caso, abrem-se cenários complicados e potencialmente caóticos.”
O primeiro cenário seria um Governo que incluiria o PD e a Força Itália, com alguns aliados menores. Haverá “gritos de escândalo, mas isto faz parte do jogo”. As eleições de 2013 acabaram assim: Berlusconi no Governo e o M5S e a Liga na oposição. Resta saber se um PD enfraquecido o poderá fazer. Em termos de governabilidade, não é uma solução famosa. Não há nenhuma aliança estável em perspectiva.
O “Cavaliere” nunca teve problema em divorciar-se dos aliados. E, num contexto em que dois populismos surgem como ameaça, o do M5S e o da Liga, o “pós-populista” Berlusconi pode encontrar uma nova vocação, escreve o politólogo Angelo Panebianco. “O sistema político italiano é uma máquina destinada à produção contínua de partidos anti-sistema. O que torna necessária a construção de diques.” Talvez Berlusconi queira ser o “guardião do dique” contra o populismo.