O homem do microfone de Mandela tem agora que salvar a África do Sul
Cyril Ramaphosa foi eleito por uma unha negra para liderar o ANC e recuperar a legitimidade do partido dominante. A tarefa é gigantesca, mas há décadas que o sucessor indicado por Mandela esperava por este momento.
Quando Nelson Mandela fez o primeiro discurso após ser libertado da prisão, em 1990, perante uma multidão em êxtase, era Cyril Ramaphosa quem segurava o microfone. Talvez por isso, o novo líder do Congresso Nacional Africano (ANC) seja descrito como o “Forrest Gump da história política sul-africana” por, tal como a personagem protagonizada por Tom Hanks, ter estado de alguma forma presente nos momentos decisivos que marcaram as últimas décadas do país. O sucessor que Mandela escolheu finalmente cumprir o seu destino. E poucas foram as vezes na sua longa história em que o antigo movimento de libertação precisou tanto do homem certo na hora certa.
Ramaphosa, de 65 anos, chega ao topo do ANC num momento crítico. Os sucessivos casos de corrupção que marcam a presidência de Jacob Zuma trouxeram uma sombra difícil de afastar. O partido que esteve na linha da frente da luta anti-apartheid é hoje pouco mais do que uma máquina de gestão de redes clientelares. Zuma, em concreto, é acusado de ter agido em conluio com um grupo de empresários, os Gupta, que terão sido beneficiados em vários contratos públicos, chegando a influenciar até a escolha de ministros. A imprensa sul-africana está cheia de investigações ao “sequestro do Estado” por parte dos dirigentes do ANC.
Ao mesmo tempo, o partido parece atravessar uma crise existencial, sentida por outros movimentos de libertação africanos. Depois de alcançado o objectivo primordial de derrubar o sistema de opressão da minoria branca, o ANC é visto como tendo falhado na missão de trazer segurança e prosperidade ao povo que libertou.
A África do Sul é hoje um dos países mais desiguais do planeta (um coeficiente de Gini de 0.65, segundo o Banco Mundial) e mesmo a sua posição de “porta de entrada” para o investimento no continente africano está em risco.
No seu discurso de tomada de posse como presidente do ANC, Ramaphosa prometeu abertamente lutar contra a corrupção. “Temos de nos confrontar com a realidade de que instituições vitais do nosso Estado foram atacadas por indivíduos e famílias”, afirmou.
A favor do ANC parece restar apenas a memória da luta contra o apartheid, mas mesmo essa herança pode já não ser suficiente. Nas eleições municipais do ano passado, o partido foi derrotado em algumas das cidades mais populosas, como Pretória, a capital administrativa. “Não queremos ser um partido rural”, dizia durante o fim-de-semana o secretário-geral do ANC, Gwede Mantashe.
Reposicionar o partido na linha dos ideais que estiveram na sua criação e repor o capital de legitimidade que os anos de Zuma retiraram – são estas as grandes missões para Ramaphosa. Mas o mandato presidencial de Zuma termina apenas em 2019, fragilizando a posição do novo líder.
“Há a possibilidade muito real de a África do Sul ser governada durante pelo menos 18 meses por ‘dois centros de poder’, com a autoridade e legitimidade do partido (formalmente apoiante de Ramaphosa) a enfrentar o Estado (liderado por Zuma)”, escrevia o professor da Universidade de Witwatersrand, Roger Southall, no site African Arguments.
A única forma de evitar este cenário é uma saída prematura de Zuma da presidência. O ex-Presidente Thabo Mbeki estava numa posição semelhante, quando em 2008 decidiu abandonar a presidência do país depois de ter perdido a liderança do ANC precisamente para Zuma. Porém, ao contrário de Mbeki, Zuma receia que uma saída do poder o possa deixar à mercê das inúmeras acusações judiciais por corrupção que pendem sobre si. A única forma de apressar a sua saída seria através de uma moção de censura – Zuma já sobreviveu a várias, sempre salvo pela maioria do ANC –, mas para isso era necessária uma indicação clara nesse sentido por parte da cúpula do partido.
A conferência que elegeu Ramaphosa pôs a nu um partido altamente dividido. Ramaphosa (que é vice-presidente da África do Sul) venceu a ex-mulher de Zuma e antiga líder da União Africana, Nkosazana Dlamini-Zuma, por apenas 179 votos entre 4700 delegados. O órgão dirigente do partido composto por seis elementos ficou dividido ao meio entre apoiantes das duas listas, tal como o poderoso Comité Executivo Nacional. “O paradoxo é que Dlamini-Zuma perdeu, mas a sua facção ganhou”, diz ao The Guardian o analista Richard Calland.
A divisão de lugares irá obrigar Ramaphosa a negociações constantes com os seus rivais internos. Mas esse é um terreno em que o novo líder do ANC parece mover-se bem. “Ele não é o tipo de político brutamontes que entre e afaste tudo do caminho, ele é mais um conciliador, um construtor de pontes”, descreve o professor da Universidade de Joanesburgo Steven Friedman.
De sindicalista a milionário
Bill Keller, chefe da delegação do New York Times em Joanesburgo entre 1992 e 1995, descrevia em 2013 Ramaphosa como um “manipulador charmoso”, “adepto tanto de criar tensões como de apaziguá-las”.
Quando Ramaphosa chegou àquele momento em que segurava o microfone de Mandela, para trás tinha vários anos na linha da frente do principal sindicato do poderoso sector mineiro.
Depressa se tornou num importante dirigente do ANC e esteve ao lado de Mandela durante as negociações que puseram fim ao poder da minoria branca e viabilizaram as primeiras eleições livres, em 1994. Ramaphosa era o escolhido por “Madiba” para lhe suceder em 1999, mas o sindicalista encontrou a forte oposição do lobby dos dirigentes que estiveram no exílio durante os anos de fogo do apartheid, que preferiam um deles. Mandela não quis forçar o seu desejo e permitiu a ascensão de Mbeki. Ramaphosa ainda foi convidado para ministro dos Negócios Estrangeiros, mas recusou e voltou ao mundo empresarial, mas agora do outro lado.
Ao longo dos anos, o antigo sindicalista construiu um império empresarial que lhe valeu um lugar no topo dos milionários negros mais ricos em África. Em 2015, a revista Forbes avaliava a sua fortuna em 450 milhões de dólares (378 milhões de euros). É sobretudo no sector mineiro que a Shanduka, a holding de Ramaphosa, tem maiores investimentos, mas o seu portfolio inclui os restaurantes sul-africanos da cadeia de fast-food McDonalds, para além de negócios na banca, telecomunicações e energia.
O sucesso de Ramaphosa é um exemplo de uma das mais controversas políticas pós-apartheid, conhecida como “Black Economic Empowerment”, uma redistribuição de grande parte dos negócios anteriormente detidos apenas por brancos pela população negra. O problema, dizem os críticos, é que este tipo de políticas vieram criar uma nova casta de milionários, todos muito próximos do ANC, enquanto o grosso da população continua na pobreza.
O analista Moeletsi Mbeki, irmão do ex-Presidente, diz que Ramaphosa escreveu as leis que acabaram por beneficiá-lo. “Ele fez a lei que criou esta catástrofe da corrupção, debaixo do manto da ascensão social negra”, afirma Mbeki ao Financial Times.
Durante os anos que dedicou aos negócios, Ramaphosa nunca perdeu de vista a política. Manteve-se no comité executivo do ANC e chefiou vários grupos de trabalho. “Ele teve sempre o longo prazo em vista”, disse ao Guardian a veterana da luta anti-apartheid Barbara Hogan.
Mas há um episódio que marca particularmente o percurso de Ramaphosa e que irá seguramente servir de arma de arremesso pelos seus adversários políticos. Em 2012, fazia parte da Lonmin, uma empresa mineira que enfrentava uma greve numa exploração de platina em Marikana. Depois de dez trabalhadores terem morrido em confrontos com outros trabalhadores e seguranças da mina, Ramaphosa pediu a intervenção da polícia, chamando os grevistas de “criminosos”. Nos dias seguintes morreram 34 mineiros.
Cyril Ramaphosa acabou por fazer um pedido de desculpas público, pagou pelas despesas dos funerais, mas negou sempre ter incitado a polícia a abrir fogo sobre os grevistas. Porém, a imagem de um milionário, ex-sindicalista, envolvido num massacre de pobres mineiros negros continua a ser poderosa.