Quem não tem Handmaid’s Tale caça com Alias Grace, já no Netflix
Adaptação do romance de Margaret Atwood chegou esta sexta-feira a Portugal. Um crime real, uma criada e seis episódios de Sarah Polley e da escritora a quem Kazuo Ishiguro pediu desculpas, este ano, quando ganhou o Nobel.
A obra da escritora Margaret Atwood é tão ampla que resumir a atmosfera dos seus romances a um só ambiente é redutor. Mas tal como o zeitgeist pareceu feito à medida para receber e premiar The Handmaid’s Tale há um par de meses, o ambiente de Novembro, no Netflix e fora dele, está pronto para receber o ar igualmente tenso de Alias Grace. “Assassina. Assassina”, diz Grace Marks no primeiro episódio da série de época sobre um duplo homicídio real e a criada acusada de o cometer.
A nova minissérie chega em pleno “pico Atwood”, como brinca James Poniewozik no New York Times, que no espaço de dois anos deverá ver quatro obras suas adaptadas para os ecrãs. A autora disse ao New York Times que além de The Handmaid’s Tale, feita para o Hulu e vencedora do primeiro prémio de Melhor Série Dramática nos Emmys entregue a um serviço de streaming, e agora de Alias Grace, tem “pelo menos mais dois” livros em vias de adaptação televisiva. A série do Hulu (ainda?) não chegou a Portugal de forma legal, visto que foi feita por um dos três grandes serviços de streaming do mercado global que não opera no país — a Amazon, que está em Portugal há cerca de um ano, terá deixado passar The Handmaid’s Tale (adaptação do livro A História de Uma Serva) quando ainda era chefiada por Roy Price, que abandonou há semanas o cargo após alegações de assédio sexual, e o Netflix ficou com a adaptação conduzida pela actriz e realizadora Sarah Polley, que agora se estreia em todo o mundo.
Em todo o mundo menos no Canadá, onde já chegou em Setembro e deu à televisão pública canadiana (CBC) a melhor estreia de Outono em cinco anos. O canal e o Netflix custearam os 21,4 milhões de euros que financiaram a série, produzida e adaptada por Polley e realizada por Mary Harron, a realizadora de Psicopata Americano (2000). Alias Grace (adaptação da obra Criminosa Ou Inocente?) é narrada pela própria Grace Marks (interpretada por Sarah Gadon), uma criada doméstica recém-emigrada da Irlanda para o Norte do Canadá, onde acaba por ser presa pelo duplo homicídio de um lavrador e a sua governanta, as personagens de Paul Gross e Anna Paquin. Se cometeu ou auxiliou esse crime quando era adolescente, ou foi alvo de uma incriminação e discriminação por ser alguém diferente, é a tarefa em que o médico Simon Jordan (Edward Holcroft), enfeitiçado pela capacidade de Grace de contar uma boa história, tenta ajudar o espectador. Um whodunnit do crime real, como tantas histórias populares dos últimos anos.
Grace é também uma celebridade por um motivo que não devia ser motivo para celebridade, o homicídio, como comenta no primeiro episódio. Grace é também um avatar das restrições da moral vitoriana, da vulnerabilidade de mulheres e raparigas como ela numa sociedade desigual. Encontramo-la já mulher, conhecemo-la menina. Cruzamo-nos com outros nomes, discretamente parte do elenco — a própria Atwood e o realizador David Cronenberg.
“The Handmaid’s Tale é uma janela para um possível futuro em que os direitos das mulheres foram erodidos. Alias Grace é um olhar para como as coisas eram antes de as mulheres terem quaisquer direitos”, o que tem impacto agora que “os direitos das mulheres são incrivelmente precários”, disse Polley ao New York Times.
O crime é real e ocorreu em 1843, o livro é uma ficção histórica. Margaret Atwood, a escritora canadiana que está então a viver um momento particular de visibilidade e renovado interesse do dito mainstream pelo seu trabalho com o objectivo de o levar de leitores a espectadores, nega porém ser um arauto dos tempos futuros, ou da desgraça feminina. Diz só ter escrito obras como esta espécie de díptico de streaming de 2017 porque lê as notícias, mais precisamente as últimas páginas dos jornais, quando escreve. Seja em 1984, para The Handmaid’s Tale, seja em 1996, quando publicou Alias Grace e este integrou a shortlist do Prémio Booker.
Talvez pelo momento, talvez pelo denso corpo de obra que a escritora possui, 2017 foi o ano da coroação dos seus retratos precisos mas sempre abertos no audiovisual, mas ainda não foi o seu ano do Nobel da Literatura. Tanto que o seu receptor, o japonês Kazuo Ishiguro, pediu perdão à escritora de 77 anos por ter sido o distinguido este ano. “Peço desculpas a Margaret Atwood por ela não estar a receber este prémio. Pensei genuinamente que ela ganharia muito em breve. Nunca pensei que eu ganharia”, disse o escritor ao jornal Globe and Mail.
O tempo, central ao que parece, também no próprio projecto de Alias Grace. Sarah Polley abordou Atwood há mais de 20 anos porque queria adaptar ao cinema o livro que acabara de ler. Tinha 17 anos. Agora, com a maturidade da actriz de A Minha Vida sem Mim (2002) ou da realizadora de Longe Dela (2006, adaptado de uma obra de Alice Munro), foi possível — e foi-o também pela elasticidade da produção televisiva actual, construtora de um grande edifício de streaming, generalistas e cabo feito de alguns nichos e personagens e narrativas mais complexas. As obras de Atwood não são estranhas à adaptação, do filme The Handmaid’s Tale (de que a autora não gostou) até A Noiva Ladra (2007), com Mary-Louise Parker. No caso de Alias Grace, só fez questão, conta a Variety, de que se mantivesse bem viva a ambiguidade quanto à autoria do crime central.
A crítica parece quase tão hipnotizada pela contadora de histórias que é Grace quanto o médico que a ouve ao longo de seis episódios de cerca de 40 minutos. Grace está presa. “É onde temos tempo para pensar e ninguém para ouvir os nossos pensamentos”, diz no primeiro episódio. “Por isso contamo-los a nós mesmas.”