É de dinheiro que a UE quer ouvir Theresa May falar

Primeira-ministra britânica vai a Florença com o objectivo de quebrar impasse nas negociações do "Brexit". Na mala traz a promessa de pagar 20 mil milhões pelo "divórcio", mas dificilmente irá satisfazer os europeus.

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May vai discursar em Florença, cidade “no coração histórico da Europa” Peter Nicholls/Reuters

Era uma intervenção que não estava prevista mas que se tornou inevitável face ao impasse em que caíram as negociações para a saída britânica da União Europeia durante o Verão. Theresa May vai a Florença – cidade “no coração histórico da Europa”, antiga potência comercial, com quem Londres tem “fortes laços económicos e culturais” – para um discurso em que terá de reduzir o hiato entre aquilo que o seu Governo deseja e o que está disposto a fazer para convencer os líderes europeus a acelerarem as discussões , a começar pelo reconhecimento da chamada “factura do divórcio”.

Porquê (só) agora?

Oito meses após o discurso na Lancaster House, em que a primeira-ministra assumiu uma postura clara a favor de um corte duro com a UE, e seis meses depois de ter accionado o artigo 50 do Tratado de Lisboa, Bruxelas e os outros 27 Estados insistem que continua a não haver certezas sobre os planos de Londres para o “Brexit”. Uma indefinição que as propostas britânicas apresentadas até agora não desfizeram e que se agravou desde as legislativas de Junho – May perdeu a maioria no Parlamento e autoridade sobre o partido, reabrindo o debate entre quem quer um “Brexit” o mais suave possível e a ala mais eurocéptica.

Michel Barnier, chefe dos negociadores europeus, não esconde o pouco que foi conseguido nas três rondas já realizadas, muito longe dos “progressos suficientes” exigidos pela UE nas três áreas prioritárias antes de aceitar discutir o futuro das relações bilaterais. O que tornou cada vez mais improvável que o aval a essa segunda fase seja dado na cimeira de Outubro.

O que vai May dizer?

Desta vez, Downing Street esconde o jogo. Os membros do Governo, chamados nesta quinta-feira ao nº 10 dar o seu aval à estratégia de May só puderam ler o discurso com meia hora de antecedência. Mas, para que a intervenção tenha o impacto que Londres espera, a primeira-ministra terá de assumir que o Reino Unido tem contas a saldar e compromissos a respeitar antes de sair da UE. “Para os 27 resume-se tudo a dinheiro”, escreveu o Politico, numa avaliação confirmada por um inquérito da agência Bloomberg a dirigentes de todos os Estados-membros e que reafirma a total sintonia europeia nesta questão.

O Financial Times noticiou que May se vai comprometer a pagar a totalidade das contribuições britânicas para o actual orçamento da UE, em vigor até 2020 – ou seja 20 mil milhões de euros, tendo em conta pagamentos anuais que rondam os dez mil milhões. Ao invés de um valor claro, deverá assegurar que “nenhum Estado terá de pagar mais ou receber menos” até ao final do actual quadro orçamental.

Será suficiente?

Este é um valor muito abaixo dos que têm sido discutidos em Bruxelas – entre os cem mil milhões e os 40 mil milhões – e corresponde apenas ao mínimo dos que os europeus dizem ser devido por Londres (às contribuições orçamentais juntam-se obrigações de longo prazo, incluindo pagamentos de pensões de funcionários ou o financiamento de projectos de desenvolvimento).

A imprensa adianta que May poderá encurtar o hiato revelando um pouco mais os seus planos para o período de transição – fase que as suas partes cada vez mais consideram imprescindível para evitar um precipício após Março de 2019. Há indícios de que May se inclina para uma solução que mantenha tanto quanto possível o actual status quo durante um período de dois a três anos, incluindo o acesso ao mercado único, o que implicaria continuar contribuições financeiras para a UE após 2020 e, assim, aproximar-se um pouco mais dos valores exigidos por Bruxelas.

Como vão reagir os europeus?

Ninguém, nem sequer Downing Street, acredita que Bruxelas ou os restantes 27 reajam com grandes aplausos. “Eles provavelmente vão dizer que estão desiludidos e têm razão”, disse ao FT um responsável de um governo europeu. “Mas pelo menos podemos começar a negociar.” Até agora o Reino Unido recusava sequer explicar que compromissos se sentia obrigado a pagar, insistindo que cabia à UE justificar a legalidade das exigências apresentadas.

Esta atitude de “ambiguidade construtiva”, como lhe chamou o ministro britânico para o “Brexit”, David Davis, estava a bloquear as negociações – que têm nos direitos dos cidadãos afectados pelo “Brexit” e na fronteira da Irlanda do Norte outros focos de contenção – e a minar a confiança entre os dois lados. “Como se pode construir uma relação futura sem confiança, sem honrar os compromissos passados?”, questionou-se Barnier.

A primeira-ministra deu também a entender que vai falar directamente aos seus congéneres, passando por cima de Barnier, acreditando que várias capitais estão cientes que é urgente avançar para as negociações sobre o futuro das relações bilaterais. No entanto, e segundo o mesmo inquérito da Bloomberg, os líderes europeus mantêm-se firmes no apoio ao método de negociações faseadas e vários elogiaram a forma como Barnier está a executar o mandato que lhe atribuíram.

May tem apoio para cumprir o que anunciar?

É a grande questão que assombra as negociações desde as eleições de Junho e que nos últimos dias teve um novo episódio, com Boris Johnson a apresentar na imprensa sua própria visão do que deve ser o “Brexit”, rejeitando, por exemplo, que o Reino Unido continue a pagar para aceder ao mercado único. O ministro dos Negócios Estrangeiros acabou por recuar, dizendo que as suas palavras não diferem do plano que tem vindo a ser traçado por May. “Estamos muito unidos”, disse também aos jornalistas o ministro do Trabalho, David Gauke, no final das duas horas e meia de reunião em Downing Street.

Mas mesmo que as facções mais moderadas (liderada pelo ministro das Finanças, Philip Hamond) e eurocéptica (de que Johnson é um dos rostos) do executivo tenham dado o seu aval ao discurso, para a ala mais dura do Partido Conservador é totalmente inaceitável a noção de que há uma “factura” a pagar pelo “Brexit”. “A ideia de que vamos continuar a pagar grandes quantias de dinheiro para a UE quebra completamente com aquela que foi uma das principais questões do referendo”, disse à Sky News o deputado Peter Bone. Uma das muitas vozes que ameaçam deixar May numa posição incómoda já no final da próxima semana, quando começar o muito aguardado congresso anual dos tories

 

 

 

 

 

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