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Em defesa de Mísia, de Amália e do fado

Uma coisa são factos, outra são opiniões. A difamação não se dá bem com nenhum deles. Eis um triste exemplo.

A semana que termina, agora, com essa celebração pública do fado que é o Festival Caixa Alfama, começou de forma estranha e triste, com uma "polémica" de tons difamatórios em torno de uma actuação da fadista e cantora Mísia na Argentina. Na verdade não foi uma actuação, foram duas, e na monumental sala Baleia Azul do Centro Cultural Kirchner (CCK), em Buenos Aires — cidade onde ela já actuou várias vezes ao longo de uma profícua carreira de 25 anos de fados e canções.

Os convites para os dois concertos (grátis, política do espaço) esgotaram-se em apenas uma hora. Foi assim que, perante salas cheias, ela apresentou dois discos seus: Para Amália (no dia 2 de Setembro) e a colectânea Do Primeiro Fado ao Último Tango (dia 3). O que correu mal? Nada, aparentemente. Foi muito aplaudida nos dois e recebeu por isso vários elogios, com ecos na imprensa local. O Clarín viu ali "dois concertos impecáveis" e titulou a sua crítica "Uma voz que constrói pequenas obras de arte"; e La Nación, dizendo-a "guardiã de um belíssimo legado" (o do fado, mas também aquele que Amália semeou pelo mundo na diversidade das suas apresentações), notou que as observações da cantora em palco, "numa atmosfera de cativante cordialidade", ocorrem num espírito que "fomenta no espectador a vontade de subir ao palco e abraçá-la."

Isto, que sugere satisfação e triunfo, teve tradução, num texto publicado no Expresso online, no seguinte título: "Mísia recusou-se a cantar Uma Casa Portuguesa e tornou-se non grata para emigrantes na Argentina". Com base no texto, vieram mensagens de ódio (e, em contraponto, de apoio e indignação). É o trivial das redes sociais, mas aqui há mais do que isso. Há uma campanha orquestrada que fez da cantora alvo e que, propagada, quer denegri-la perante os públicos que pelo mundo a recebem e aplaudem. Por causa de quê? De uma canção? Não, há mais. Uma canção, uma foto e uma filmagem não autorizada. Vamos, então, por partes, sublinhando desde já que a comunidade portuguesa presente (parte da qual depois endereçou a Mísia mensagens de apoio e incentivo) era minoritária numa sala grandemente preenchida, nos dois dias, por argentinos.

Mísia recusou-se a cantar Uma Casa Portuguesa e explicou à audiência porquê. A Notícias Magazine, que depois ouviu a cantora a propósito da "polémica" (o que o correspondente do Expresso não fez), registou esta justificação: "Não canto essa música. Já tinha acontecido noutros concertos e nunca houve problema. Não a canto no álbum nem em concertos, tenho o meu repertório. É um tema com o qual não me identifico, acho que é uma apologia à pobreza." Após explicar ao público a recusa, pegou num megafone (como tem feito noutros palcos) e, com os músicos a acompanhá-la, cantou Lisboa Antiga por entre a plateia. Foi muito aplaudida, como pode ver-se num vídeo amador feito com telemóvel e colocado no YouTube. Tinha direito a fazê-lo? Total! Um artista escolhe o seu repertório. E o espectáculo não era uma "homenagem a Amália", ao contrário do que foi dito, era sim baseado em Para Amália, um disco de Mísia, que é uma das vozes que mais insistentemente elogiam Amália onde quer que cante.

Mas há dois outros episódios: Mísia interpelou um senhor que gravava continuamente o seu espectáculo com uma câmara profissional, pedindo-lhe para não o fazer (ele parou e ela depois agradeceu-lhe com um "beijinho", simulado a partir do palco); e insistiu, mais tarde, com um fadista local para que retirasse uma foto sua que ele pusera no Facebook. O fadista, citado no Expresso, diz que apagou a foto "por medo" (de quê? que Mísia lhe batesse?). Em resumo: três casos simples (de direito à imagem e de cantar o que se quer) deram origem a um rol de acusações lamentáveis na "rede". Nada que o fado não conheça, mas nem Mísia, nem Amália ("A melhor fadista de todos os tempos", como se ouve Mísia dizer num vídeo do CCK, aos 7:50) nem o fado merecem tal lamaçal.

Quanto a Uma Casa Portuguesa, até tem uma curiosa história. Ficará para a próxima crónica.

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