Gatlin foi o campeão e Bolt ficou com os aplausos
Justin Gatlin impôs-se ao jamaicano, que ficou em terceiro.
Glen Mills achava em tempos que Usain Bolt era um velocista talhado para o sprint longo e não queria que ele corresse os 100m. O treinador jamaicano considerava que o seu jovem tinha o mau hábito de olhar para o lado e era uma prova demasiado curta para quem partia tão mal. E esse nunca foi o forte de Bolt, sempre a confiar na força das suas pernas para ganhar as corridas. Resultou quase sempre, menos na última, que era para ser a despedida do jamaicano em provas individuais. Na final dos 100m dos Mundiais de atletismo de Londres, o impensável aconteceu e não para um “jovem lobo” que queria assaltar o trono (estavam lá alguns).
O sucessor de Bolt é alguém que é cinco anos mais velho que ele e que nunca lhe tinha ganho numa grande final, fosse em Mundiais ou Jogos Olímpicos. Neste sábado, Justin ganhou a Bolt pela primeira vez numa prova de 100m. E vai ser a última.
Bolt nem sequer ficou em segundo na final. Acabou em terceiro, atrás de Gatlin (9,92s) e de Christian Coleman (9,94s), esse sim um jovem candidato ao trono da velocidade para os próximos anos. A diferença para os dois norte-americanos foi mínima (Bolt fez 9,95s, o seu melhor de 2017), mas foi o suficiente para falhar aquele que seria o seu quarto título mundial no hectómetro, e ainda conseguindo recuperar o bronze que esteve perdido durante quase toda a corrida. Depois da vertigem do sprint, todo um estádio ficou de boca aberta ao ver algo raro. Não era um homem de amarelo a ganhar. Não se repetiu a história de outras finais. Não era bluff.
Era um de azul do Team USA e quando apareceu o nome de Gatlin no ecrã gigante a reacção do público foi a mesma de sempre quando se trata do norte-americano. Assobios e apupos. Foi assim quando fora anunciado (todos os outros finalistas foram aplaudidos), mas Gatlin, na pista oito, estava impassível. E procurou fazer a sua festa indiferente à animosidade, embrulhado na bandeira dos EUA e cumprimentado pelos adversários, Bolt incluído. E passou muito despercebida a volta de honra que deu a celebrar o título. Ao mesmo tempo, Bolt dava uma pequena entrevista transmitida no sistema sonoro do estádio que há cinco anos o vira ser tricampeão olímpico.
Doze anos depois
Depois de tanto tempo a andar atrás de Bolt (e esteve bem perto de o bater em Pequim 2015, ficando a apenas 0,01s), Gatlin conseguiu finalmente chegar à redenção completa, depois de uma suspensão de quatro anos entre 2006 e 2010 por doping que lhe travou o que era na altura um domínio incontestado, e que incluíra um título olímpico em Atenas 2004, um mísero centésimo à frente de Francis Obikwelu. Quando regressou, já não era ele que estava no topo e nunca pareceu conviver muito bem com o domínio de Bolt (foi vice-campeão em 2013 e 2015), muito menos com a sua popularidade. Gatlin era o vilão para o super-herói que era (é) o jamaicano, um campeão do povo, que o ama mesmo quando perde.
O norte-americano volta em Londres a ser campeão mundial do hectómetro 12 anos depois de Helsínquia 2005, uns Mundiais em que também foi campeão dos 200m, numa final em que corria um jovem de 18 anos chamado Usain St. Leo Bolt, que terminou em último depois de ter dominado essa corrida até uma lesão o deixar a cortar a meta a coxear. Até este sábado, essa tinha sido a única vez que Gatlin tinha ganho a Bolt numa prova individual.
Mas a semi-desilusão de Bolt naquela que não a sua prova de eleição (em que deixa um recorde do mundo, 9,58s, que será inatacável por muitos anos), pode ainda transformar-se numa despedida feliz com a estafeta dos 4x100m no penúltimo dia dos Mundiais. Pelo que se viu em Londres no hectómetro, talvez Bolt tenha feito a coisa certa em não ir aos 200m, onde tem um sucessor anunciado no sul-africano Wayde van Niekerk. É esperar mais uns dias para a verdadeira despedida. Ou então para o anúncio que quase todo o mundo quer ouvir: que mudou de ideias.