“El choque de trenes” na Catalunha
Querem os nacionalistas mesmo o referendo ou o seu objectivo é forçar Madrid a impedi-lo?
1. Faltam três meses. Carles Puigdemont, chefe do governo catalão (govern), “queimou os navios” para não poder recuar no processo de independência. Marcou para 1 de Outubro um “referendo de autodeterminação” com a seguinte pergunta: “Está de acordo com um Estado Independente sob a forma de República?” Se o “sim” vencer, a independência será declarada no parlamento de Barcelona 48 horas depois. Se perder, serão convocadas eleições. E se o Governo espanhol impedir o voto, a secessão será automática e imediata.
Na imprensa espanhola generalizou-se a metáfora do “choque de trenes”. Não só entre Madrid e Barcelona, mas também entre dois nacionalismos, o espanhol e o catalão. No entanto, há quem pense que o referendo não se vai realizar, pois o objectivo dos independentistas é forçar Madrid a impedi-lo e a transformar em mártires os seus dirigentes para incendiar o nacionalismo catalão. Seria uma forma de superar a fraqueza.
2. O govern elaborou uma Ley del Refèrendum d’Autodeterminaciò que divulgou, apenas parcialmente, esta semana. Não em sessão parlamentar, mas num teatro, para impedir a intervenção do Tribunal Constitucional. Declarou esta lei acima de todas as outras, sejam a Constituição ou o próprio Estatut catalão.
O bloco independentista visa uma declaração de independência unilateral. A lei do referendo não exige um quórum, uma participação mínima, nem uma maioria qualificada de votos para declarar a independência. Dizem os seus mentores que um quórum seria um incentivo ao “boicote”. Note-se que para alterar o Estatut é necessária uma maioria de dois terços dos deputados — foi o parlament que aprovou este regulamento. Os mesmos dois terços são necessários num referendo para uma “freguesia” pedir a separação de um município. Para fundar um Estado bastariam 50,01% dos votos expressos.
Os independentistas guardam para mais tarde as mobilizações de rua. De momento “aquecem os motores” e fazem uma maciça campanha de mensagens para convencer as pessoas uma a uma, família a família, vizinho a vizinho, através do WhatsApp, no estilo da campanha de Trump.
O govern invoca ter a legalidade internacional do seu lado. É uma mistificação, pois todas as normas internacionais dizem o contrário. Não importa. Oriol Junqueras, líder da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), decretou a ilegalidade congénita do Estado espanhol: “A suposta legalidade espanhola é uma legalidade que não é legal porque não segue a norma do direito internacional com que o próprio Estado espanhol se comprometeu.” Queria dizer: a lei espanhola não obedece ao direito internacional.
3. O govern de Barcelona, que conduz o chamado Procés Constituent a Catalunya, é minoritário. A coligação Juntos pelo Sim — a ERC e o Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT, antiga Convergência) — tem 62 deputados em 135. Para governar celebrou um pacto com a Candidatura de Unidade Popular (CUP) — que quer a ruptura com Espanha, com a Europa e com o capitalismo. A pequena CUP, dez deputados, é a “vanguarda” que marca o ritmo do processo de secessão.
As legislativas de Setembro de 2015 foram apresentadas como um referendo sobre a independência. Mas o Juntos pelo Sim e a CUP apenas somaram 47,8% dos votos. Perderam a aposta. Mas o seu governo considera-se com legitimidade para forçar a ruptura independentista.
Puigdemont (na foto) conhece as sondagens. Todas indicam uma realidade iniludível: a Catalunha está partida em dois blocos praticamente iguais e com múltiplas opiniões. O referendo ameaça tornar-se uma batalha de catalães contra catalães. A maioria está descontente com o actual estatuto. Há um forte sentimento anti-Madrid. No entanto, 43% dos inquiridos na sondagem GAD3/La Vanguardia (2 de Julho) declaram-se “tão catalães como espanhóis” — contra 24,4% que se definem “mais catalães do que espanhóis” e 18,1% “unicamente catalães”. Só 10,2% se identificam como espanhóis ou “mais espanhóis que catalães”.
A grande maioria (71,7%) quer um referendo sobre as relações com Espanha e 54% pensam votar no dia 1 de Outubro. Desses, 42,5% votariam pela independência contra 37,6% que a ela se oporiam, mas 58,4% preferem um referendo acordado com o Governo de Madrid. Apenas 37,8% aprovam o referendo unilateral. E 57% optariam por uma revisão da Constituição espanhola. Numa outra sondagem de fins de Maio (Metroscopia/El País), 61% dos catalães recusam a independência unilateral.
Esta semana o conseller (ministro) Jordi Baiget, do PDeCAT, foi demitido por Puigdemont após ter manifestado dúvidas quanto à possibilidade de se realizar o referendo perante “a capacidade coerciva do Estado”. E disse que, em privado, outros membros do executivo e muitos altos funcionários pensam o mesmo. Temem as sanções legais. Este é um dos problemas com que Puigdemont e Junqueras se debatem. O outro é a mobilização. Na “consulta” de 2014 participaram dois milhões de pessoas. Em Outubro querem três milhões de votantes (num censo de 5,5 milhões), mas não muito mais.
4. Acreditam os independentistas no sucesso do referendo? Ou apostam no “choque de trenes”? Estão reunidas as “condições objectivas” para a independência? Que se passaria no dia 2 de Outubro no caso provável de vitória ridícula: uma “maioria búlgara” com menos de metade do censo? O procés também já não pode ser parado sob pena de descrédito dos nacionalistas. As dúvidas obrigam a pensar numa estratégia escondida.
O nacionalismo independentista não é (ainda) hegemónico. O cenário ideal seria o de uma intervenção espanhola que provocasse indignação, alargando a sua base de apoio e fazendo saltar as últimas pontes com Madrid. Nos círculos nacionalistas diz-se que Puigdemont adoraria ser preso para se tornar um “mártir nacional”.
Mariano Rajoy estará consciente disso. Diz uma “fonte próxima” ao El Español que Puigdemont e os independentistas estão a “dar motivos de sobra” para uma intervenção mas que existem razões para esperar. “Não podemos cair nas provocações.” Mas poderá resistir à pressão da ala mais nacionalista do seu eleitorado?
Joan Tapia, antigo director do La Vanguardia, propõe que imaginemos um cenário concreto do “choque de trenes”: 72 deputados independentistas reunidos em sessão permanente no parlament, com 30 mil pessoas a defendê-los na praça, perante as câmaras de televisão de todo o mundo.