O genial amigo: o défice excessivo
Entre 2001 a 2015, Portugal só não esteve em situação de défice excessivo em dois anos: 2004 e 2008.
Enquanto decorrem as celebrações do anúncio da saída de Portugal do procedimento por défice excessivo (haverá sessão solene na Sociedade de Geografia? Ou na Voz do Operário pois parece que o país voltou a ter voz?) venho oferecer a minha modesta contribuição. Vou passar em revista a relação entre Portugal e os défices excessivos. Irei desde a inauguração por Guterres em 2001 até ao recente anúncio da saída de Portugal do procedimento por défice excessivo.
O leitor poderá achar este artigo algo maçudo, e não deixará de ter uma certa razão. Mas pareceu-me que valia a pena correr este risco. Ao menos os factos, e os números, aqui ficam. Àqueles leitores que tiverem coragem de ler todo o artigo oferecerei, no fim, um gadget. Coragem leitor amigo!
Duas notas metodológicas: (i) todos os documentos referentes ao procedimento por défice excessivo aqui citados são documentos oficiais disponíveis na internet; não indiquei as referências para não sobrecarregar o texto, e (ii) os dados citados para o défice orçamental são, na generalidade dos casos, os dados disponíveis quando as decisões foram tomadas. Em alguns casos houve revisões posteriores, por vezes ligadas a informação adicional entretanto disponível mas também a alterações de critérios contabilísticos, ou correção do seu não respeito, e revisão para trás das séries estatísticas.
Uma última palavra sobre a “mecânica” do procedimento por défice excessivo. Começo por lembrar que os Estados Membros devem evitar ter défices orçamentais excessivos pois os mesmos não se coadunam com os princípios que orientam a União Económica e Monetária (UEM): estabilidade de preços, finanças públicas e condições monetárias sãs e uma balança de pagamentos sustentável. Se um Estado Membro incorrer num défice excessivo então deve corrigi-lo num prazo que lhe é fixado. A decisão de considerar que existe um défice excessivo num Estado Membro e a recomendação para a sua correção num dado prazo, são feitas em simultâneo, desde a reforma de 2005 do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Quando se considera que o défice excessivo foi corrigido ou seja (grosso modo) trazido para baixo da barra de 3% do PIB a decisão inicial é revogada.
A inauguração dos défices excessivos em Portugal ocorreu em 2001 (governo Guterres, PS) quando o défice orçamental atingiu 4,1% do PIB. O défice excessivo de Portugal foi, depois de o euro ter sido criado, o primeiro de um país da zona euro. Foi uma inauguração absoluta!
Na altura as regras para correção dos défices excessivos eram mais duras que as atuais, embora simples e transparentes: um défice excessivo tinha de ser corrigido no ano a seguir ao da sua identificação. Foi o que fez o governo Durão Barroso (PSD): o défice excessivo foi identificado em 2002 (com base nos resultados orçamentais de 2001, governo Guterres) e corrigido em 2003, ano em que o défice se situou em 2,8% do PIB. Com base neste resultado o Conselho decidiu pela revogação do défice excessivo em maio de 2004. Sol de pouca dura: em setembro de 2005 Portugal estava de novo em défice excessivo. Já lá vamos.
Entretanto as regras para correção de um défice excessivo foram alteradas em 2005 no quadro da primeira grande reforma do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Um défice excessivo passou a ser um pecado venial em vez de mortal. A correção poderia a partir de agora operar-se ao longo de vários anos, em função, fundamentalmente, da situação económica do país em causa e da sua posição no ciclo económico; sob certas condições o prazo para a correção poderia ainda ser prorrogado.
Sócrates (PS) inicia o seu governo em março de 2005 e recebe um défice orçamental a aumentar. Na primavera de 2005, e entrando em linha de conta com orçamento para esse ano aprovado pelo governo Santana Lopes (PSD), a Comissão previa um défice de 4,9% do PIB para 2005, claramente acima de 3%. Sócrates vai aproveitar as possibilidades que as novas regras lhe oferecem: apresenta em junho à Comissão um Programa de Estabilidade e Crescimento visando um défice de 6,2% do PIB em 2005 (ano em curso!), défice esse que seria reduzido progressivamente até aos 2,7 % em 2008. A Comissão aceitou esta estratégia orçamental: aumentar o défice primeiro, reduzi-lo depois. Naturalmente, o défice para 2005 foi considerado excessivo (setembro de 2005) e foram dados três anos para o excesso ser corrigido. Contudo, a correção teve lugar um ano mais cedo. O défice ficou em 2,6% do PIB em 2007, (contra 3,9% em 2006, redução de 1,3%) e a situação de défice excessivo foi revogada em junho de 2008.
Mas, mais uma vez, foi sol de pouca dura. Em 2009 Portugal, novamente com Sócrates como primeiro-ministro, estava outra vez em défice excessivo! A correção deveria ter lugar em 2013, ou seja, foi dado a Portugal um prazo mais alargado (quatro anos) para corrigir o seu défice excessivo tendo em conta que o défice em 2009 resultara também das medidas (de 1,5% do PIB) tomadas em resposta ao Plano Europeu de Recuperação Económica
A trajetória para a correção do défice excessivo é apresentada no Programa de Estabilidade e Crescimento para 2010-2013 (versão 15/3/2010) que previa uma redução do défice a partir de 9,3% do PIB em 2009, até chegar a 2,8% do PIB em 2013. Esta redução não iria, no entanto, ter lugar pelo que o défice excessivo não foi corrigido em 2013.
Em 2010 e até abril de 2011 Portugal foi tendo crescentes dificuldades para se financiar nos mercados financeiros. O spread das taxas de juro a 10 anos aumentou de 67 para mais de 400 pontos de base, situando-se então as taxas de juro em perto de 7,5% A evolução das contas públicas não ajudou. A despesa pública primária aumentou de 44% do PIB em 2005 para 49% em 2010. O défice orçamental ultrapassou em 2010 os 10% do PIB. A dívida pública aumentou de 53,4% do PIB em 2001 para 96,2% em 2010, quase o dobro! A situação das finanças públicas portuguesas estava a tornar-se insustentável. No entanto, a sucessiva apresentação pelo governo de objetivos mais ambiciosos para redução do défice não foram suficientes para inverter o “sentimento do mercado”. A incapacidade de se financiar nos mercados financeiros e o consequente aperto de liquidez interna, levou Portugal, no início de abril de 2011,a solicitar assistência financeira à Europa e ao FMI. Seguiu-se a negociação, com a Troika, pelo governo em funções, de um programa de ajustamento para aplicação dos 78 mil milhões de euros a que se elevou o empréstimo recebido. O programa de ajustamento (largamente baseado na “Nota” com medidas de política económica apresentada pelo governo no início de março) foi aprovado pelo Eurogrupo a 16 de maio de 2011, com base na carta de intenções assinada pelo Ministro das Finanças Teixeira dos Santos e pelo Governador do Banco de Portugal Carlos Costa. Crucial para a aprovação do programa foi o apoio dado por partidos da oposição de então—PSD e CDS-numa atitude que se pode classificar de patriótica pois não tinham participado na negociação do programa. Sem esse apoio a assistência financeira não teria sido concedida. Na declaração do Eurogrupo de 16 de maio pode ler-se (tradução minha) “ O programa foi anunciado pelas autoridades portuguesas a 5 de maio. Os ministros saúdam o apoio expressado pelos partidos da oposição e apelam a todos os partidos políticos para garantir uma rigorosa e pronta implementação do programa”.
Com a aprovação do programa foi libertada a primeira tranche de apoio financeiro de cerca de 16 mil milhões de euros (20% do envelope total!) destinados a permitir que Portugal pudesse honrar pagamentos de dívida pública que se venciam em maio e junho de 2011. 16 mil milhões! Teria sido bonito se Portugal não tivesse obtido assistência financeira: a bancarrota, ao qual se teria certamente seguido, para dizer o mínimo, um “processo traumático”. Muitíssimo traumático, diria eu. Convém não esquecer.
O programa de ajustamento cobria o período 2011-2013 e centrava-se no Estado, dada a dramática situação das finanças públicas do país, razão de ser aliás, do pedido de auxílio externo (tal com escrevi nos artigos publicados neste jornal em 14 e 15 de abril). O programa previa uma redução do défice orçamental para 3% do PIB em 2013, o que equivaleria à correção do défice excessivo nesse ano. No entanto, a correção do défice excessivo não era, enquanto tal, uma performance clause do programa. Um défice superior a 3% do PIB em 2013 podia ser compatível, como foi, com o desembolso das tranches da assistência financeira. Foi o que aconteceu, como veremos mais adiante.
O governo de Passos Coelho (PSD) entra em funções em junho de 2011 e passa a executar o programa de ajustamento. A execução, necessariamente vigorosa e determinada, da parte orçamental do programa produz os seus frutos: em 2011 o défice é reduzido de 11,2 para 7,4% do PIB (também à custa de medidas adicionais tomadas pelo novo governo) e para 5,7% em 2012. O défice orçamental português começou finalmente a ser corrigido!
A correção não se deu em 2013 como previsto no Programa de Ajustamento. Com efeito a Comissão reconheceu que Portugal tinha tomado as medidas necessárias para a redução do défice mas que este não tinha atingido os valores pretendidos devido a fatores fora do controlo das autoridades portuguesas, a saber, uma recessão mais profunda que o previsto em 2012. Estavam reunidas as condições para prolongar o período para a correção do défice excessivo. Foi o que fez a Comissão (Barroso): propôs dar mais um ano a Portugal, fixando em 2014 o ano em que tal deveria ocorrer. No entanto, pelas razões acima indicadas, mas agora também devido às decisões do Tribunal Constitucional em 2013 (e.g. a reposição dos 13° e 14° meses), a Comissão (Barroso) voltou a propor prorrogar, por mais um ano, agora para 2015, o prazo para a correção do défice excessivo. Foram dados mais dois anos para Portugal corrigir o seu défice orçamental excessivo. Que mais flexibilidade por parte de Comissão poderia haver? E ainda vai ser dado mais um ano! A prorrogação não significou, nem podia significar, interromper a redução do défice, que ficou em 4,8% do PIB em 2013, e 4,5 % em 2014. (sem BES).
Portugal saiu do programa de ajustamento em maio de 2014. Dados os resultados obtidos e restaurada a credibilidade que permitiu o regresso aos mercados financeiros, Portugal prescindiu de parte da última tranche do programa, cerca de 1,7 mil milhões de euros A correção do défice excessivo não estava porém concluída. Faltava saber se a correção iria ou não ocorrer em 2015. Para isso era preciso esperar por 2016.
O ano de 2016 não começou bem. As contas públicas de 2015 fecharam com um défice de 4,4% do PIB para o que contribuiu a solução adotada para o Banif. Um valor desta magnitude não autorizava concluir que o défice excessivo tinha sido corrigido. Não tanto por ser superior a 3% do PIB mas por ser muito superior a 3%. Ou seja, Portugal não respeitou o prazo que lhe tinha sido dado para a correção do défice excessivo.
O governo de António Costa (PS, empossado em novembro de 2015) aprova em fevereiro de 2016, e envia à Comissão, um projeto de orçamento visando um défice de 2,6% do PIB para 2016. Um défice inferior em apenas 0,4 % ao registado em 2015, cerca de 3% do PIB descontando o efeito Banif. Em entrevista ao Financial Times, a 24 de janeiro, o primeiro-ministro dizia que a redução do défice de 3 para 2,6%, resultante de “semanas de intensas conversas” com “officials” da Comissão Europeia (propositadamente não traduzo “officials” pois tanto pode ser um Comissário como um simples funcionário), representava um esforço adicional do governo, pois era inferior aos 2,8% do seu programa e como tal dava um sinal claro de responsabilidade orçamental.
Não se passou bem assim. De facto, a Comissão considerou que no projeto de orçamento a redução prevista para o défice era inferior à que tinha sido recomendada a Portugal para 2016. As autoridades portuguesas responderam descrevendo as medidas entretanto acrescentadas (nessa semana) ao projeto de orçamento que passou a ter como objetivo um défice de 2,2% do PIB para 2016.
Este “aviso” feito pela Comissão produziu efeitos. A partir daqui a prossecução do objetivo orçamental foi feita sem tergiversações e o ano de 2016 fechou com um défice de 2 % do PIB. A condição necessária para a conclusão da correção do défice excessivo, iniciada em 2011, estava alcançada. Ainda bem que assim foi! Se tal não tivesse acontecido Portugal teria ficado sujeito a sanções.
De facto, a Comissão considerou que Portugal não tinha, em 2015, tomado “ações eficazes” (effective action), para a correção do défice excessivo. Em consequência, o prazo para a correção do défice excessivo não podia ser prorrogado nos termos em que o fora em 2013 e 2014. Tornava-se necessário passar ao passo seguinte (stepping-up) do procedimento dos défices excessivos: Portugal já não receberia uma recomendação para corrigir o défice excessivo, seria antes notificado para o corrigir. Foi o que aconteceu, Portugal foi notificado pelo Conselho, em 2 de agosto, para corrigir o défice excessivo em 2016. Se a notificação não fosse respeitada e tendo a economia portuguesa registado um crescimento positivo em 2016, o passo seguinte seriam sanções, como decorre diretamente do Tratado. Um forte incentivo à correção do défice excessivo.
O défice excessivo tinha pois de ser mesmo corrigido em 2016. Se necessário metendo o travão às quatro rodas. Quando um ministro das finanças tem cobertura a 100% (150%?) do seu primeiro-ministro pode pôr o défice onde quiser, até a zero, com a (não) execução orçamental. Foi o que aconteceu, inter alia, com as cativações introduzidas no outono de 2016 e o défice ficou em 2,0% do PIB.
Ainda bem! Não vou aqui discutir se a qualidade do ajustamento orçamental foi a melhor, outros o fizeram ou farão, em particular aqueles que terão de financiar a dívida de Portugal. Fica-me no entanto uma dúvida: se em janeiro de 2016 um défice de 2,6% era suficiente para virar a página e já representava um “esforço adicional”, como explicar abrir o champanhe por um défice de 2% do PIB? Festejar o overshooting ou alguma mudança de ideias sobre a bondade da consolidação orçamental?
Com um défice de 2% do PIB em 2016 estavam reunidas as condições para a saída de Portugal do procedimento por défice excessivo iniciado em 2009. Sete anos para corrigir um défice excessivo, e com que dificuldade! Restava decidir quando, pois algumas incertezas sobre 2017 pairavam no horizonte. Ora a Comissão, nas previsões da primavera de 2017, publicadas a 11 de maio previu um défice orçamental de 1,8% do PIB para Portugal, claramente abaixo de 3%. Game over. A revogação do défice excessivo tinha de ser proposta de imediato. Como foi.
A saída do procedimento por défice excessivo tem de ser vista na perspetiva do que fui relatando neste artigo. De 2001 a 2015, Portugal só não esteve em situação de défice excessivo em dois anos: 2004 (revogação devida à correção feita por Durão Barroso em 2003) e 2008 (revogação devida à correção de 1,3% do PIB feita por Sócrates em 2007, de um défice excessivo do seu próprio governo). O défice orçamental atingiu um “pico” de 11,2% do PIB em 2010 sendo reduzido durante o programa de ajustamento para 4,8% em 2013 e depois para 2,9 % em 2015, uma redução média de 1,7% ao ano. Em 2016 o défice foi reduzido em 0,9% do PIB, quantidade modesta.
Vou terminar oferecendo, como prometido, um gadget aos valentes leitores que conseguiram chegar até aqui. Ofereço-lhes uma cábula (pifométrica!) para poderem ligar a evolução do défice orçamental ao crescimento da economia. Vou explicar: a economia portuguesa está a crescer a um ritmo rápido, como aliás a área do euro. Se anualizarmos a taxa de crescimento trimestral, método utilizado nos EUA, a economia portuguesa está a crescer a mais de 4% ao ano. Em quanto ficará em 2017, não sei.
Suponhamos que vai ficar em 3%. Ora o orçamento para 2017 tem como objetivo um défice de 1,6% do PIB com base num crescimento de 1,5%. Que acontecerá ao défice se o crescimento da economia for superior? Terá de ser menor: haverá mais receita de impostos e menos despesa, por exemplo em subsídio de desemprego. A cábula diz que, por cada ponto percentual de crescimento a mais, o défice tem de ser meio ponto a menos. Por exemplo se o crescimento for de 3% em 2017 o défice terá de ficar em 0,8% do PIB: 3 menos 1,5 dá 1,5, cuja metade é 0,75; finalmente, 1,6 menos 0,75= dá 0,8 (arredondado). Ou seja, o crescimento “adicional” da economia em 2017 conduziria a um défice que é metade do que está no orçamento! Se esta redução não ocorrer então quer dizer que o governo se apropriou dos “dividendos do crescimento” seja aumentando despesa, para lá do orçamentado, ou reduzindo impostos. O “há mais vida para além do défice” terá então triunfado sobre a consolidação orçamental. Não seria bom pois, inter alia, a dívida não teria sido reduzida tanto como poderia ter sido.
O leitor pode assim através desta cábula (pifométrica!), ir-se divertindo ao longo do ano convertendo em melhoria do défice orçamental os anúncios dos nossos políticos sobre o vibrante crescimento da economia portuguesa. Divirtam-se e controlem a evolução do défice!
Economista, antigo funcionário da Comissão Europeia. As opiniões expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor. O autor escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico