Quem disse que a sida já não mata? Só no ano passado houve 124 óbitos
“É uma doença muito traiçoeira: mantém-se sem sintomas durante muitos anos, e a pessoa acaba por descobri-la quando o sistema imunitário já se encontra muito depauperado”, diz Isabel Aldir, que dirige o programa nacional de VIH/sida.
A ideia de que já ninguém morre de sida, pelo menos nos países desenvolvidos, choca com os números: só no ano passado houve pelo menos 124 óbitos, a que se juntam quase outros tantos (122) em 2015. E se recuarmos a 2014 constatamos que foram contabilizadas em Portugal outras 166 mortes pela doença.
Por uma questão de simplificação, o mais recente relatório do programa nacional para a infecção de VIH, sida e tuberculose, que é apresentado nesta segunda-feira à tarde, em Lisboa, não inclui informação relativa aos óbitos. E para quem hoje tem 25 ou 30 anos a doença perdeu, de facto, o estigma de sentença mortal que transportou consigo até quase ao final do século passado, quando não havia terapêuticas eficazes para travar o seu avanço, admite Isabel Aldir, que dirige o programa nacional de VIH/sida. São jovens que nunca conheceram ninguém que tivesse morrido disto.
“É um efeito perverso dos avanços científicos: como não viveram a primeira fase da epidemia, as gerações mais novas não lhe dão a importância que ela merece. Para eles a sida é uma doença crónica com tratamento”, observa a médica.
E não é? Depende. As mortes podem resultar de três tipos de situações, explica Isabel Adir: diagnóstico demasiado tardio, desleixo ou falta de condições do doente para se submeter a tratamento (é o caso dos toxicodependentes, por exemplo) ou sequelas de terem contraído sida numa época em que a terapêutica disponível era ainda pouco eficaz.
“É uma doença muito traiçoeira: mantém-se sem sintomas durante muitos anos, e a pessoa acaba por descobri-la quando o sistema imunitário já se encontra muito depauperado. Por vezes é demasiado tarde”, descreve. Dez anos é quanto dura muitas vezes este período assintomático. Daí a importância de convencer o maior número possível de pessoas a fazer o teste. Até porque há grupos de risco que desconhecem sê-lo, como o das mulheres em idade de menopausa, aponta a directora do programa. Por um lado, a situação em que se encontra o seu organismo facilita a infecção durante as relações sexuais; por outro, são mais descuidadas pelo facto de já não correrem o risco de engravidar.
Mais homens, mais heterossexuais
A doença continua muito associada, na cabeça das pessoas, a homossexuais em idade activa, apesar de as estatísticas o desmentirem: 57% dos 841 novos diagnósticos de VIH feitos no ano passado em Portugal dizem respeito a heterossexuais, e dos 44.624 casos detectados até hoje em pessoas que continuam, tanto quanto se sabe, vivas há 8259 – aproximadamente um quinto – que dizem respeito a doentes com mais de 50 anos. Seja como for, continua a tratar-se de um problema de saúde maioritariamente masculino: 73% dos novos diagnósticos feitos no ano passado referem-se a homens.
Ao contrário dos EUA, onde a distinção entre quem está infectado por VIH e quem desenvolveu já sida se faz pela contagem das células CD4, em Portugal o diagnóstico oficial da doença é feito a partir do momento em que surge a primeira patologia oportunista – seja ela uma mera gripe que não reage à medicação habitual ou uma doença rara, com o sarcoma de Kaposi, um tumor cutâneo que, com frequência aparece, associado à sida.
O número de novos casos de infecção por VIH parece ter diminuído uma vez mais – os dados divulgados esta tarde são provisórios e podem ainda sofrer subidas –, de 1198, em 2015, para 841, em 2016. Mas o mesmo não sucede com a percentagem de diagnósticos que, de entre estes casos, correspondem a pessoas que já desenvolveram sida. Nos 841 novos casos detectados no ano passado, que correspondem a 8,1 por cada cem mil habitantes, há 161 que são já de sida. "Verificou-se um aumento no valor percentual dos casos de sida (de 15,3%, em 2015, para 19,1%, em 2016)", lê-se no relatório.
A área metropolitana de Lisboa continua a liderar a tabela no que à localização geográfica dos doentes diz respeito. E o relatório fala no papel essencial que as autarquias podem desempenhar: “Tornar as cidades inclusivas e sustentáveis não será viável sem que as autoridades municipais assumam a necessidade de garantir uma vida saudável a todos os seus munícipes, controlando a sida e reduzindo as hepatites, abordando o consumo de substâncias ilícitas e reduzindo as desigualdades. As políticas locais podem abordar as necessidades com mais resiliência e adaptar-se melhor às prioridades em movimento.”
Os responsáveis do programa nacional de VIH/sida depararam-se com um fenómeno que lhes tem causado alguma perplexidade: dos 44.624 casos detectados até hoje só 34.391 estão a ter acompanhamento médico. O que se passa com mais de dez mil doentes? Terão morrido, não tendo a sua causa de morte tido nada a ver com a sida? Emigrado? Ninguém sabe bem, mas deslindar o mistério faz parte das prioridades para 2017.