O monstro de Cannes é o Netflix
Chegou à competição Okja, o primeiro dos filmes Netflix cuja selecção a concurso motivou um manifesto do presidente do júri, Pedro Almodóvar. O nome Netflix é vaiado quando aparece no ecrã. Mas mesmo com distribuição em sala assegurada, o que é que faria o filme de Bong Joon Ho em concurso?
Okja, visto esta sexta-feira no grande ecrã de Cannes e com estreia marcada para o dia 28 de Junho nos pequenos ecrãs lá de casa, é o título do filme a que Pedro Almodóvar, presidente do júri, não vai dar a Palma de Ouro. A exibição a concurso do filme do coreano Bong Joon Ho foi a oportunidade esperada para regressar ao tema Netflix, à decisão do Festival de Cannes de a partir de 2018 não aceitar filmes em competição que não tenham garantida distribuição em sala (forma de fazer eco da contestação que entretanto irrompeu na indústria francesa pelo facto de o serviço de streaming estar a concorrer com os seus produtos em Cannes sem se preocupar com os espectadores que não sejam os seus subscritores) e às declarações do presidente do júri, no primeiro dia do festival, de que seria paradoxal que uma Palma de Ouro ou outro prémio fossem parar a um filme sem distribuição convencional – manifesto de Pedro que se abaterá também sobre The Meyerowiitz Stories, de Noah Baumbach, um segundo filme da competição produzido pela plataforma que tem cem milhões de subscritores.
Bong Joon Ho tem poder de encaixe. Diz-se grande admirador de Almodóvar, o que quer que ele pense ao menos vai ver o filme em Cannes no grande ecrã, isso orgulha o coreano; Tilda Swinton, intérprete do filme (e co-produtora), ela própria por duas vezes jurada, lembrou, com elegância, que há muitos filmes, de Cannes mas não só, que as pessoas não vêem em sala. E deu a entender, aliás, que a distribuição de Okja apenas no serviço de streaming não é assunto encerrado. Elogiou a liberdade que o Netflix deu a Bong para ele exprimir a sua visão – o realizador foi explícito ao dizer que lhe confiaram um orçamento de envergadura para ele fazer o que quisesse – e rematou que não veio a Cannes à procura de prémios mas para mostrar o filme naquele enorme ecrã da Sala Lumière. Horas antes, na projecção, o nome Netflix no genérico era recebido como se fosse o demónio: vaias, assobios... Em plena Croisette, um cartaz enorme a anunciar a estreia do filme nos computadores ou nos portáteis, nesse dia 28 de Junho, desafia o Palais des Festivals.
Pois é, o enorme ecrã da sala Lumière resiste como fetiche cinéfilo. E ao olhar para ele – isto é, para as imagens de Okja – podemos perguntar se mais pertinente não seria questionar por que é que este filme de Bong Joon Ho está em competição, dúvida que nos assaltaria ainda que estivesse assegurada distribuição global em sala. O eclectismo tem sido uma das linhas do delegado-geral Thierry Frémaux (certamente que quando Shrek foi anunciado para a competição em 2001, ao lado de Oliveira, Moretti, Rivette ou Haneke, a ideia pareceu monstruosa, mas hoje…) e o princípio, justo, de que o cinema é feito de muitos cinemas. (Mas não terá sido Frémaux precipitado nesta edição, ao querer mostrar que Cannes se abre aos novos tempos em que se vê cinema de outras maneiras?).
A trascendência do martírio
E por falar em monstros; a obra do cineasta coreano tem sido exemplo de uma espécie de exuberância monstruosa, não se segurando num género, dentro de cada filme ou de filme para filme (experimente ver-se de seguida The Host – A Criatura, de 2006, e Mother – Uma Força Única, de 2010). Okja parece, no entanto, fazer de novo – prendendo tudo pelos fios do espectáculo. Dá para pensar, sobre esta história da amizade de uma miúda por uma enorme e bizarra criatura que foi o resultado de uma manipulação genética, que mistura filme de monstros, sátira e família (como The Host, mas pior), nos efeitos da americanização do universo de Bong Joon Ho, já que o filme abastarda, simplifica (até por uma espécie de “espírito de cinema de animação” de que se serve) muito daquilo que ele inventou. O encontro entre a Coreia e os Estados Unidos, toda a parte central do filme (às tantas, as malévolas intenções de Tilda Swinton fazem o monstro vir a Nova Iorque, quando entra em cena também o penoso “boneco” de Jake Gyllenhaal), contenta-se em estar sempre do lado da caricatura.
E Jupiter’s Moon mostra o húngaro Kornél Mundruczó como o novo Andrei Zulawski. Uma das luas de Júpiter chama-se Europa. Este é um filme sobre a Europa, sobre uma crise social, política e moral: os refugiados. Mas Mundruczó, que trabalhou em campos de refugiados, quis partir da ideia de estranheza que a condição de refugiado marca, nas mentes e nos corpos dos que estão sem território, para levantar voo, alegoricamente – coisa que o seu cinema, veja-se White Dog (2014), sempre ameaçou. É a interessantíssima ideia do refugiado como figura de santidade, fora do tempo e fora do espaço, criatura do milagre num mundo onde não se encontra refúgio da miséria moral – são todos coniventes. Conhecendo-se o cinema de Mundruczó, o seu apetite exibicionista, a sua tentação pelo seu próprio espectáculo, também é uma ideia a temer. E concretiza-se: show de niilismo na terra, voos e cambalhotas no céu (o refugiado, utilizado e explorado por todos, voa, é a transcendencia do martírio). E assim, a acrescentar à boutade Zulawski, por causa do excesso, uma outra: Kornél Mundruczó, que não começa um plano em Jupiter’s Moon que não tenha sido desenhado para (se) exibir, também quer ser Christopher Nolan.