Uma criança pode ter duas mães biológicas, diz regulador

Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida diz que “projecto de maternidade biologicamente partilhado” não é ilegal. Decisão é “completamente nova”, segundo o presidente.

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No cartão de cidadão da criança deverá aparecer, na filiação, duas mães Paulo Pimenta

 

Um casal de duas mulheres que queira ter um filho através da “partilha biológica de maternidade” pode fazê-lo se assim o entender, decidiu o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) num parecer divulgado esta semana. A decisão é “completamente nova”, disse ao PÚBLICO o presidente Eurico Reis. E, “seguramente”, abre a porta ao primeiro de muitos casos, acrescentou.

A “partilha biológica de maternidade” é a possibilidade de as duas mulheres de um casal candidato à aplicação de técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA) contribuírem biologicamente para a concepção da criança com o recurso dos ovócitos da “mulher A” e transferência embrionária — depois da inseminação com espermatozóides do dador — para o útero da “mulher B”.  

No documento, a CNPMA não deixa dúvidas: “Não está legalmente vedada a possibilidade de atender a um projecto de maternidade biologicamente partilhado por um casal de mulheres através do recurso a fertilização recíproca.”

Embora só agora divulgado, o parecer é de Janeiro, por isso “é muito provável” que um dos vários casais que pediram esclarecimentos sobre este tema ao CNPMA já tenha iniciado os procedimentos, segundo Eurico Reis.

O documento lembra que a lei garante o acesso de todos os casais e de todas as mulheres à PMA, independentemente do seu estado civil, orientação sexual e diagnóstico de infertilidade. Ressalva ainda que, quando não há infertilidade, a lei recomenda que se privilegie a inseminação artificial, considerada uma técnica menos invasiva. O conselho, que tem nove membros, afirma também que a definição dada pelo artigo 8 da Lei n.º 25/2016 nega que esta “fertilização recíproca” seja equiparada à “gestação de substituição” porque não se cumpre a condição de que a gestante entregue a criança após o parto.

A lei entende por gestação de substituição “qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade”. Eurico Reis sublinha a “diferença fundamental” entre os dois conceitos: “Na gestação de substituição a grávida não tem qualquer direito parental sobre a criança que vai nascer [na fertilização recíproca, sim].”

A médica Madalena Barata, do Centro de Medicina da Reprodução do British Hospital, quer esperar por mais esclarecimentos para tomar uma posição. Mas explica que, na gestação de substituição, a mulher que fará a gestação “não partilhará qualquer grau de parentesco com o feto desenvolvido no seu útero”. A diferença entre a “fertilização recíproca” e a “gestação de substituição” é sobretudo legal, sublinha Eurico Reis. No cartão de cidadão deverá aparecer, na filiação, duas mães, continua o juiz, tal como já acontece quando casais do mesmo sexo adoptam uma criança.

Ilga satisfeita

A PMA foi regulamentada em 2006 e nessa altura foi criado o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida como entidade reguladora. Em Junho de 2016 foi aprovado o alargamento dos beneficiários. A regulamentação da lei que prevê o acesso à gestação de substituição deverá estar para breve. 

O decreto de 2016 define que no SNS não é permitido que as duas mulheres do mesmo casal se submetam em simultâneo a tratamentos de PMA. Cabe ao casal a escolha do elemento que será submetido a inseminação artificial ou fertilização in vitro. Carlos Calhaz Jorge, director da Unidade Médica de Reprodução do Hospital de Santa Maria, diz que “as listas de espera são tão longas que não há noção do tipo de pedidos” feitos. A prática é regular em Espanha e na Bélgica, mas, diz, é difícil avaliar a sua frequência a nível mundial. 

A lei tem provocado inúmeras questões, pois “permite várias interpretações”, explica Eurico Reis. Esta em concreto, que deu origem ao parecer do CNPMA, levou algum tempo a decidir, conta o juiz. A decisão tomou-se a partir “do princípio geral em direito privado”: “O que não está proibido é permitido.” E explica: “Esta opção [do casal de mulheres] propicia o fortalecimento dos laços emocionais dentro do casal e a persistência da ligação, portanto aprovámos favoravelmente.” É “puro e simples exercício da liberdade individual dos membros da comunidade buscarem a sua felicidade”.

Para a Ilga — Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero, “o importante é que as pessoas possam realizar os seus projectos de família”. Por isso, “só podemos ficar satisfeitos”, comenta Joana Cadete Pires, da direcção.

O tema está longe de ser unânime. A maternidade biológica partilhada só é possível através de fertilização in vitro. Mas, por este ser um método mais invasivo e dispendioso, deve, mesmo assim, ser possível fazê-lo antes de tentar a inseminação artificial, que é mais simples, mas que não permite que duas mulheres sejam mães biológicas de uma mesma criança? A questão é levantada por Carlos Calhaz Jorge como médico da área, e não como membro do CNPMA. Tecnicamente, é preciso saber se “há indicação para fazer fertilização in vitro porque esta tem as suas indicações” que têm a ver com “a não-normalidade do organismo feminino”. E “cria um risco que não existia: não seria preciso estimular os ovários, espetar uma agulha”, eventualmente ter uma hemorragia e uma infecção. “Há centros que facilitarão esse tipo de abordagem e há outros que serão mais conservadores.”

O médico Alberto Barros, director do Centro de Genética da Reprodução, e membro do conselho, admite que a partilha biológica da maternidade pode ser algo “perturbador”, que “do ponto de vista médico é discutível”, mas que do ponto de vista “afectivo, amoroso do casal” pode ser “considerado necessário”.

E quando um casal se separa?

Ao CPMA chegam, todas as semanas, “novas perguntas”, diz o presidente Eurico Reis. Uma outra deliberação da mesma data, 27 de Janeiro, responde a um caso de uma mulher que fez a transferência de embriões criopreservados (ou seja, iniciou o processo de gravidez) depois de se separar do homem, e sem este saber.

Segundo contou Eurico Reis, os embriões foram criopreservados quando o casal estava junto; entretanto, o homem ter-se-á juntado a outra mulher e foi esta quem fez queixa da primeira ao CNPMA. “Do ponto de vista genético, a criança é filha daquele homem. Mas legalmente pode não o ser”, explica o juiz. “Ele pode dizer: ‘Não autorizei a transferência’.” O presidente antecipa: “A determinação de parentalidade vai criar problemas.”

O caso, “o primeiro e único em 10 anos”, levantou a questão sobre declarações de consentimento informado e a sua revogação.

O CNPMA analisou relatórios de centros de PMA e percebeu que a prática para a recolha do consentimento é feita de diferentes formas. Agora, a deliberação manda que em cada ciclo de transferência de embriões criopreservados se repita a recolha do consentimento das pessoas – este passa a ser prestado para um acto médico específico.

A decisão refere que, se não for feito de forma presencial, o consentimento tem que ser enviado pelo próprio. Diz também que até ao início dos processos terapêuticos, qualquer uma das pessoas pode revogar o seu consentimento. Antes de assinarem o consentimento, os elementos deveriam ser expressamente informados sobre a questão da revogação na possibilidade de o casal se dissolver, assim como se informam as pessoas sobre o que acontece em caso de morte de uma pessoa (aí a lei determina que não há transferência se o processo não tiver sido iniciado), diz Eurico Reis. “Há dezenas de pessoas nesta situação, as pessoas morrem, há embriões, consentimentos e declarações expressas de que a transferência pode ser feita” – mas a lei barra essa possibilidade.

Nota: Retirou-se a citação de Eurico Reis, presidente da CNPMA, em que diz se se fizer um teste de ADN, “vai resultar que a criança é filha das duas mulheres, da que fornece o óvulo e da mulher em cujo útero foi feita a gestação”, pois o teste de ADN não tem registo da gestante já que esta não irá contribuir com o ovócito.

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