Kim Jong-un não é louco nem irracional e é isso que o torna mais perigoso
A Coreia do Norte precisa de convencer americanos, japoneses e sul-coreanos de que é louca.
Numa entrevista à Reuters, disse o presidente Donald Trump: “Há a possibilidade de acabarmos por ter um conflito maior, maior, com a Coreia do Norte.” Não surpreendeu ninguém. Apenas se percebeu que não tem nenhuma “boa opção”. Observou há dias o New York Times que se forja na Coreia do Norte “uma crise dos mísseis cubanos em câmara lenta”. O mundo enfrenta, de facto, a maior crise nuclear desde 1962. Trata-se de duas crises distintas e de que temos percepções contraditórias. É sobre isto que hoje escrevo.
Em 1962 houve uma prova de força entre as superpotências que terminou num compromisso entre Kennedy e Khrustchov. Na crise norte-coreana é o “fraco” que desafia o “forte”. Não se vê nenhuma perspectiva de negociação. Para os americanos, a negociação depende de Pyongyang suspender e depois renunciar ao seu programa nuclear. A Coreia do Norte aceita negociar tudo menos o nuclear.
O regime dos Kim fez do nuclear uma questão existencial. Por mais prémios que lhe prometam, está determinado a concluir o seu arsenal. Explica que o nuclear não é moeda de troca. Tem o desígnio de dispor de mísseis e bombas miniaturizadas com que possam atingir os EUA: para então negociar a paz, entre potências nucleares.
À exibição de megalomania Kim Jong-un acrescenta um quadro de apocalipse. Ao risco de um ataque preventivo responde com a ameaça de transformar a Coreia do Sul num “mar de fogo”. Não escaparão os militares americanos no Sul, nem o Japão e o Hawai. Caminhamos para a fase em que um erro de cálculo sobre o inimigo pode levar a uma catástrofe nuclear. A História dá-nos exemplos destes equívocos.
Um velho mito
A opinião pública ocidental — e também a japonesa e a de outros países da região — tem por vezes uma percepção falsa de Kim e da elite norte-coreana: o mito da irracionalidade. Choca-nos a imagem do “menino gordo”, que, em vez de legos, brinca com bombas atómicas. Num plano mais sério, muitos políticos e diplomatas decretaram a irracionalidade do regime para justificar a dificuldade de lidar com ele. “Não estamos a lidar com uma pessoa racional”, desespera-se Nikki Haley, embaixadora americana na ONU. O mesmo repete o senador John McCain. É uma ideia fixa em muitos diplomatas: só gente irracional trocaria substanciais incentivos económicos pelo prestígio da bomba nuclear, para mais num país muito pobre.
Paradoxal parece o facto de serem os Kim quem deliberadamente alimenta esta imagem, o que deveria suscitar mais interrogações. Há anos que analistas avisam que a Coreia do Norte é um “Estado-vilão”, que não recua perante nenhum crime, ao qual podem aplicar todos os adjectivos menos o de “irracional”.
Para a Coreia do Norte é útil “parecer irracional”, anota o analista americano George Friedman. Precisa de convencer americanos, sul-coreanos, japoneses, russos e chineses de que é altamente perigosa. “Mas a aparente irracionalidade do regime tem ser calibrada de modo a que a periculosidade da Coreia do Norte não seja credível ou iminente, excepto no caso de um ataque preventivo.”
Os norte-coreanos sabem tirar partido do seu “ilimitado potencial de caos”, a começar pelas catastróficas consequências de um colapso do regime. É a capacidade de desestabilizar em cadeia toda a região do Pacífico Norte, a que agora acrescenta a ameaça do terror atómico.
A aposta no nuclear remonta ao tempo de Kim Il-sung, avô do actual líder e fundador do regime. Foi travado na altura pela União Soviética, de que dependia. O projecto foi relançado no início dos anos 1990 por Kim Jong-il, quando o país sofria uma vaga de fome que matou dois milhões de pessoas.
O desígnio do nuclear é garantir a sobrevivência do regime da família Kim. Defesa perante a ameaça externa, tema de mobilização e forma de legitimação política no interior. O regime não teme apenas os americanos, mas também conspirações militares ou uma revolta popular: a fome desencadeou um vasto motim de soldados. Para consolidar o poder, Kim Jong-un procedeu a uma sangrenta depuração dos comandos militares. E, por paranóia, mandou matar o meio-irmão na Malásia. Por ser um Kim, poderia ser usado por inimigos, coreanos ou até chineses.
Em 1994, os norte-coreanos assinaram um acordo (Agreed Framework) com a Administração Clinton, aceitando o congelamento do nuclear e as inspecções internacionais, em troca de “incentivos económicos”. Receberam os fundos e as ajudas, prosseguindo em segredo o nuclear. Foi uma tábua de salvação para os Kim.
Nixon e Maquiavel
A utilidade desta discussão é saber quem são Kim Jong-un, a família e a elite dirigente de Pyongyang. Serão paranóicos como a generalidade dos tiranos. Mas não são loucos. Fazem um teatro de loucura: “Dêem-me o que eu quero senão morremos todos.” Por trás da máscara sabem calcular racionalmente, ainda que a sua racionalidade possa não ser a nossa. A racionalidade dos Estados consiste em defender friamente os seus interesses e a sua sobrevivência.
É uma velha questão na política e nas relações internacionais. Maquiavel, falando dos romanos, observou que às vezes “é sapientíssimo passar por louco”. Não era um conselho mas uma mera constatação. Ao contrário, Richard Nixon elaborou uma “teoria do louco”. Se passasse por louco, isto é por impulsivo e imprevisível, poderia assustar o adversário. Pediu a Kissinger que dissesse aos norte-vietnamitas: “O meu chefe é louco.” Os norte-vietnamitas ter-se-ão rido do estratagema.
Conclusão: a Coreia do Norte é hoje, de facto, uma potência nuclear. Mas isso muda as regras do jogo. O problema norte-coreano deixa de ser uma questão de não proliferação, passando para a esfera da dissuasão. É uma nova paisagem estratégica em que a China ocupa um papel central — será tema de outro texto.
Foi um racional caminho de astúcias e de violação das leis internacionais que elevou a Coreia do Norte ao novo patamar. Mas passou uma “linha vermelha”. A partir do momento em que se torna credível a capacidade de atingir o território continental americano, cria uma situação que Washington não pode tolerar. Não há nenhuma boa opção para americanos e chineses. Mas o statu quo tornou-se dificilmente sustentável.
Muitas tragédias da História não tiveram origem em loucos mas em cálculos errados de políticos tidos como racionais e em estratégias cheias de lógica. Hoje, os Kim estão amarrados ao seu nuclear. Perdê-lo poderá ser o fim do regime, com ou sem cataclismo. A racionalidade dos Kim tornou o mundo mais perigoso.