Marine Le Pen e os “parêntesis” da história
Le Pen escolheu a via da instrumentalização histórica ao serviço dos seus objectivos políticos.
“Com Marine Le Pen, não faremos parte da geração que pede desculpa, connosco não haverá arrependimento de Estado, connosco a História não será mais um instrumento de propaganda politica, de autoflagelação.” Estas palavras são de Marion Le Pen, a mais jovem do clã Le Pen e deputada regional pela Frente Nacional, perante uma plateia de 250 pessoas em Baiona.
Com a sua cabeleira loira, nariz empinado e “sangue na guelra”, Marion dá aos franceses uma imagem fresca, descontraída e descomplexada da candidatura da tia Marine. A sua tirada vinha a propósito das críticas de que foi alvo a candidata presidencial de extrema-direita ao negar a responsabilidade da França na rusga do Vel d’Hiv (Velódromo de Inverno) levada a cabo pela polícia francesa nos dias 16 e 17 de Julho de 1942, em Paris: “Se há responsáveis, são os que na época estavam no poder, não é a França, não é a França”, repetiu Marine Le Pen. Henri Guaino, deputado do partido Os Republicanos, aplaude: “A sua posição é a minha, a do general de Gaulle, de François Mitterrand e da República francesa até ao discurso de Jacques Chirac. […] Se, para alguns, Vichy é a sua França, o problema é deles, a minha França estava em Londres”…
O problema é que não era a França que estava em Londres mas sim de Gaulle. Em França mandava o governo colaboracionista com sede em Vichy dirigido pelo marechal Pétain e Pierre Laval. E, como se sabe, a rusga do Vel d’Hiv levou à prisão de mais de 13.000 judeus, dos quais um terço crianças. Só por si, representa mais de um quarto dos 42.000 judeus deportados de França para Auschwitz apenas no ano de 1942. Destes regressarão 811 no final da guerra.
O regime de Vichy não se limitou a aplicar as exigências alemãs: adiantou-se a elas e superou-as com muita eficácia e grande satisfação dos alemães, levando a cabo os seus próprios projectos colaboracionistas e participando activamente na “Solução Final”: praticamente todo o esquema de recenseamento, restrições e proibições, denúncias, prisões e concentração com vista à deportação era de responsabilidade francesa. Podia citar-se aqui o decreto que instituiu o “Estatuto dos Judeus”, que copiava os decretos nazis; a espoliação dos bens judaicos, denominada de “arianização económica”; a colaboração no Verão de 1942 na deportação para Auschwitz das mais de quatro mil crianças separadas à força dos pais e de onde nem uma voltou… Mas não é esse o propósito desta crónica, é sim de saber o que fazer dos passados incómodos: branquear a responsabilidade colectiva, como faz alegremente a candidatura de Marine Le Pen?
Nada que preocupe a fogosa Marion: “Contrariamente [à autoflagelação], nós ensinaremos às nossas crianças os factos gloriosos da nossa história.” Pessoalmente, acho muito bem e até necessário que se ensinem os “factos gloriosos”, mas o que fazer dos menos gloriosos? Desde o final da guerra até 1995, a resposta oficial francesa era simples: Vichy não foi a França, foi uma ruptura, um parêntesis na sua história, a verdadeira França foi a França resistente… Os franceses construíram assim uma memória idealizada da qual Vichy não fazia parte. E apesar de iniciado antes pelo trabalho académico e pelos julgamentos de colaboracionistas de topo, o fim do tabu da responsabilidade da França só foi oficializado pelo presidente Jacques Chirac a 16 de Julho de 1995, num discurso proferido no Velódromo de Inverno, em lembrança da rusga de Julho de 1942. Foi o primeiro chefe de Estado francês a reconhecer formalmente o papel da França no extermínio dos judeus europeus. Hoje, tal como o pai já o fizera, Marine Le Pen vem rever essa posição libertando, por um lado, o ressentimento sufocado de eventuais “vichyssistas” e, por outro, oferecendo um bálsamo para as consciências atormentadas: afinal não fomos “nós”, chega de nos culpabilizarmos…
Não defendo a autoflagelação, nem os pedidos de desculpa superficiais e instantaneamente esquecidos, nem legislação punitiva pela expressão pública de revisionismo, negacionismo ou anti-semitismo. Não têm qualquer efeito positivo. Mas uma coisa é a autoflagelação destrutiva, outra completamente diferente é o indispensável conhecimento e reconhecimento da responsabilidade histórica de uma nação não apenas pelos seus feitos heróicos, mas também pelos seus actos iníquos. Nunca é fácil, mas nesse campo a Alemanha e, em particular, a Alemanha de Merkel aponta o caminho.
A madame Le Pen escolheu outra via: a da instrumentalização histórica ao serviço dos seus objectivos políticos. Falsificando a história, atraiçoa simultaneamente a memória das vítimas do colaboracionismo francês e a dos que contra ele lutaram. É um caminho perigoso e, se for eleita — o que espero não aconteça —, não será certamente “um parêntesis da história” nem da França, nem da Europa…