Pode Marine Le Pen ser eleita, por distracção, com menos de 50% dos votos?
A abstenção pode transformar uma minoria nas sondagens em maioria nas urnas.
A campanha das presidenciais francesas continua o seu percurso estonteante, tecido de incertezas e a exigir muitos termos entre aspas. Depois da “queda” de François Fillon e da “imparável” ascensão de Emmanuel Macron, a semana foi marcada por novos “factos políticos”. O ex-primeiro-ministro Manuel Valls renegou o candidato oficial socialista e anunciou o voto em Emmanuel Macron. “Requiem pelo Partido Socialista”, titulou Le Monde em editorial. Ao mesmo tempo, Benoît Hamon era ultrapassado nas sondagens pelo “esquerdista” Jean-Luc Mélenchon: 11% contra 15%.
Para lá do “caso Valls”, a semana trouxe uma “revelação” que enervou a Europa. O físico e politólogo Serge Galam, investigador do Centro de Investigações Políticas de Sciences-Po (Cevipof), publicou um artigo a explicar que o resultado da segunda volta dependia largamente da taxa de abstenção e que Marine Le Pen poderia vencer com 45% ou até 42% dos votos. Os media passaram a dar mais atenção aos abstencionistas e indecisos. O diário online Politico.eu, publicado em Bruxelas, resumia os títulos de outros jornais europeus: “Como poderia Marine Le Pen vencer.”
A hipótese de Galam
Neste momento, quase um terço dos franceses admite abster-se e 43% dizem ainda não saber em quem votar. Muitos eleitores não estão “definitivamente seguros” quanto ao candidato que elegem nas sondagens, designadamente em relação a Macron. Frisam os analistas que é muito alto o nível de desconfiança e de “fadiga” em relação aos políticos e partidos. Há também indícios de um clima de crispação entre alguns “eleitorados”, o que pode vir a ter repercussão na segunda volta.
Que diz Serge Galam? Os candidatos favoritos nas sondagens são também objecto de uma forte rejeição. Muitos eleitores dizem não ter vontade de ir votar na segunda volta porque rejeitam ao mesmo tempo Le Pen, Fillon ou Macron. Entretanto, Marine Le Pen tem um eleitorado consolidado e mobilizado.
Ela jamais atingirá os 50% de votos necessários, dado que a grande maioria dos franceses não a deseja na presidência e é hostil ao seu partido. Mas se se verificar uma “abstenção diferenciada” que penalize o seu adversário, a sua vitória passará de “impossível” a “improvável” — o que quer dizer que passa a ser concebível.
O autor faz vários cenários. Por exemplo: as sondagens dariam a Marine apenas 44% das intenções de voto; imaginemos que a afluência às urnas seria de 76%; ela mobilizaria 90% dos seus eleitores virtuais, enquanto o adversário apenas arrastaria 70% dos seus; neste caso, ela seria eleita por 50,07% dos sufrágios expressos. Podem fazer-se outras contas. “Tudo repousa no diferencial de abstenção, mas o que é surpreendente não é o mais importante”, comenta o físico. Com uma mera diferença de 20% na mobilização dos eleitores, uma minoria nas sondagens pode tornar-se maioria nas urnas. “Espero que este estudo abra os olhos para o facto de que não votar significa votar em Marine Le Pen na segunda volta.” As sondagens não estão erradas. O problema é outro: ela poderá ser eleita “por distracção”.
Outros politólogos reconhecem que a “frente republicana”, que outrora obrigava os partidos de esquerda e direita a unirem-se contra a Frente Nacional (FN), está no mínimo enfraquecida. Verifica-se uma relativa “banalização” das posições políticas de Marine Le Pen e 33% dos franceses dizem concordar com as suas teses. Quase um terço dos eleitores de Os Republicanos (de Sarkozy, Fillon e Juppé) defende uma aproximação à FN e uma parte poderia votar em Marine na segunda volta.
Mas permanece um obstáculo fundamental: 75% dos franceses não a querem na presidência. Apenas 19% (menos do que a sua cotação nas sondagens) a querem ver no Eliseu. A estratégia de “desdiabolização” de Marine funcionou, mas só em parte: 58% dos inquiridos consideram que a FN “é um perigo para a democracia em França”.
Tem ainda um ponto fraco que virá a lume na segunda volta: a questão do euro. Marine tem flutuado e neste momento procura desvalorizá-la, afirmando que apenas quer que sejam os eleitores a decidir. A saída do euro é rejeitada por 85% dos franceses.
Os alarmes sobre a possibilidade da sua vitória são em boa medida uma forma de pressionar os eleitores para o voto útil — “para derrotar Le Pen”. Mas, a partir do momento em que se reconhece que a sua vitória deixou de ser “impossível” para ser apenas “improvável”, compreende-se o frisson que se apodera dos dirigentes europeus, já escaldados pelas surpresas do “Brexit” ou de Trump.
Implosão do PS
A “cisão” do Partido Socialista terá sido o facto com maior impacto no futuro. A ruptura de Valls com Hamon é o culminar de uma polarização entre duas linhas políticas antagónicas que remonta às crises da presidência de François Hollande. Enquanto Valls tentava impor uma orientação dita social-democrata ou “social-liberal”, os ex-ministros Hamon e Arnaud Montebourg aliavam-se a ecologistas e comunistas hostis ao PS para tentar fazer passar moções de censura ao Governo.
Não era um mero ajuste de contas. Anota o politólogo Gérard Grunberg, historiador do socialismo francês: “Por trás desta aliança de circunstância, esboçava-se na realidade um projecto estratégico alternativo ao projecto social-democrata, o de uma recomposição da esquerda antiliberal fundada na aliança entre a esquerda do PS e a extrema-esquerda, que tendia a desembocar na criação de um movimento novo, do tipo do Podemos espanhol.”
A candidatura de Macron fez detonar as contradições. Ao romper com Hamon, Valls rompe de facto com o partido. Tentará “reconstruir” o PS, desígnio que defendeu antes ainda de ser primeiro-ministro? A clarificação fica adiada para as legislativas de Junho.
Quanto a Hamon, está num impasse cego, arrastando o PS para uma derrota à esquerda e ao centro. A iniciativa passou para Mélenchon, candidato a líder de uma nova esquerda radical. Conclui Grunberg: “O círculo está fechado, o impasse estratégico do candidato socialista aparece em toda a sua crua verdade, pois o seu projecto não pôde desembocar nem na união das esquerdas antiliberais nem na da esquerda social-democrata.”
A três semanas do voto, a prudência é obrigatória. Apesar da relativa continuidade nas sondagens, tudo continua incerto, fora das regras de antigamente. É cedo para enterrar de vez o candidato da direita, à espera de um “improvável” sobressalto. Tal como é cedo para proclamar Macron vitorioso. O seu eleitorado “virtual” é ainda algo inseguro e vai acentuar-se o “todos contra Macron”. E falta saber o que nos trarão as próximas três semanas.