É pele portuguesa, com certeza – tatuada há cem anos e exposta em Lisboa
O Instituto de Medicina Legal sugeriu, o Mude programou. Mais de 60 amostras de peles tatuadas entre 1910 e 1940 estão no Bairro Alto para falar de marinheiros, de fado, de algum crime e da cidade de Lisboa.
É isto: um panóptico negro, com Michel Foucault a lembrar-nos a teoria do “homem infame” nas paredes exteriores, e no centro dele dezenas de amostras de pele humana. Há mamilos, umbigos e alguns pêlos, mas sobretudo tatuagens das décadas de 1910 a 1940. São peles portuguesas, com certeza, e, reacções epidérmicas à parte, O mais profundo é a pele é uma exposição que mostra pela primeira vez ao grande público a tão intrigante quanto importante colecção de tatuagem do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), agora parte da programação do Museu do Design e da Moda (Mude).
O mais profundo é a pele está no Palácio Pombal, nas raias do Bairro Alto lisboeta, porque a tatuagem portuguesa, e da Lisboa do início do século XX, era do Bairro Alto, de Alfama, da Mouraria, do Castelo. Era mais de homens do que de mulheres, estava conotada com “o homem criminal”, como recorda Carlos Branco, investigador externo do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) e um dos dois curadores da mostra. Vivia o fado, as prostitutas (também elas utilizadoras de tatuagens), e inscreve-se numa tendência internacional, à época, de relacionar a prática da tatuagem com a boémia, com os marinheiros, mas sobretudo com a marginalidade e com distúrbios psicopatológicos.
Há o incontornável “Amor Mãe” (assim, sem o “de”), uma pequena Beatriz Costa, emblemas do Belenenses, os três pastorinhos em Fátima, um pénis naif numa nádega com um aviso a toda a largura do fundo das costas (“Alto, se entras fodes-te”), ou a revelação das tatuagens que Adelaide da Facada, a mulher de O Fado (1910), envergava no estudo inicial de José Malhoa para a sua futura pintura emblemática. Tinha os cinco pontos na mão, corações nos braços, mas o rei D. Manuel II sugeriu que figurasse menos marcada e por isso acabou só com uma discreta tatuagem no pulso.
Alguns destes exemplos estão ilustrados, como reproduções fichadas do corpo de utentes do INML, outros estão em pedaços de pele recém-restaurados e conservados em 61 frascos rectangulares em formaldeído, outros ainda fotografados.
Agora, “evoluímos da sombra e do que era escondido sob as roupas para a ribalta”, diz o tatuador Hugo Makarov, convidado com outros colegas a reinterpretar alguns dos motivos clássicos da tatuagem para a antecâmara da exposição. E não só as marcas no corpo, a tinta a marcar a pele de forma ritual ou meramente lúdica está por toda a parte, como até este “género muito primordial” que está patente na exposição é também recuperado por muitos tatuadores, nota Makarov. Fala perto de Afrodite, o vestido de Jean-Paul Gaultier que, com uma peça da joalharia medicamente prescrita da jovem designer Olga Noronha, fazem a pontuação Mude na exposição.
Mude fora de portas
O mais profundo é a pele é a terceira exposição do Mude fora de portas, programação do museu enquanto a sua casa-mãe está em obras (e haverá mais três mostras fora de casa até ao final do ano). A directora do museu, Bárbara Coutinho, lembrou esta quinta-feira aos jornalistas a relevância de mostrar espólio para o museu municipal. Um contributo para o “retrato sociocultural da Lisboa do final do século XIX e do início do século XX”, mas também a sua associação lata ao design – extravasando as fronteiras do design “numa perspectiva mais clássica”, e com o museu a propor olhares “para a prática de desenho de diferentes maneiras”.
O traço destas tatuagens com cerca de cem anos é rudimentar, tanto quanto as suas ferramentas (tinta da china, agulhas e paus de fósforo acesos, e mais tarde as máquinas eléctricas "à séria" ou as improvisadas com esferográficas), são monocromáticas e os homens usam mais figuras e as mulheres mais inscrições e palavras. Elas diziam tatuar-se mais a pedido dos amantes, eles por imitação, ócio, tradição (é o caso dos marinheiros), ou afirmação de um estatuto, explicam Catarina Pombo Nabais, co-comissária da mostra e coordenadora do Laboratório de Ciência, Arte e Filosofia do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, e Carlos Branco.
Quando, há mais de cem anos, Rodolfo Xavier da Silva, o director do INML (que era também director de um estabelecimento prisional), decidiu encetar esta colecção, “seguia uma corrente científica da época e iniciou a recolha deste tipo de características das pessoas que passam pelo instituto – que faz exames a vivos e não só autópsias”, explica Maria Cristina Mendonça, do INMLCF e uma das coordenadoras da exposição.
Pessoas como Serafim da Assumpção Esteves, que foi preso e amplamente fotografado com o corpo desenhado e que, três anos depois da sua detenção, foi encontrado morto na Praça da Figueira. Identificar era a palavra-chave. Serafim tinha a ficha completa no INML e era inconfundível.
A prática científica ditava que se medisse exaustivamente o corpo humano e associava isso à caracterização psicológica e social, era antropométrica. Algo depois estudado por Michel Foucault em Vigiar e punir, obra em que explora também o panóptico como a arquitectura de onde tudo podemos ver sem ser vistos em prisões, escolas ou hospitais, entre outros. Corpos controlados, vigiados, marcas nos corpos, alvos da criminologia.
No total, são cinco salas (e a antecâmara onde os tatuadores do agora desenham em mdf inspirados pelas tatuagens de ontem), entre as quais a do panóptico com pele dentro – a tatuagem mais antiga que lá mora é de 1912 –, um espaço para a tatuagem erótica (com O Fado e outras peles), a capela com amostras de pele tatuada com motivos religiosos (muitos Cristos) e duas grandes salas dedicadas aos registos (fotografias, fichas, ilustrações) que distinguem o arquivo do INML de Lisboa. Em Coimbra e no Porto, os INML também recolheram peles e imagens, mas não compilaram os registos que dão mais camadas ao espólio exposto até 25 de Julho.
A colecção, e a exposição com ela, tem uma “epiderme, uma camada filosófica, antropológica, cultural”, explica Catarina Pombo Nadais. Além dos registos criminais, das fichas sanitárias e das ilustrações à escala ou individualizadas, conta histórias sobre a cidade – é possível identificar onde eram feitas as tatuagens, a ligação ao fado, ver como os marinheiros traziam peças mais coloridas e sofisticadas do Japão, de Macau –, mas também permite perceber como a ciência, e a vida, viam estes corpos.