Vinte anos depois, encontrei uma América mais negra

Mais activista, mais politizada, mais feminista e mais negra. É também assim a América, que defende a cultura da inclusão e diversidade, da justiça social e racial e onde a academia está consciente das desigualdades e empenhada em desafiá-las. Como se coaduna isto com a presidência de Donald Trump?

Foto

Regressei aos Estados Unidos 20 anos depois de cá ter vivido pela primeira vez. A mesma cidade, o mesmo bairro, a mesma universidade. As comparações foram inevitáveis. O meu observatório é limitado. Uma universidade-cidade na Nova Inglaterra, na costa leste próspera e liberal. Os jornais e as conversas dão-me acesso a um país mais longínquo, aquele que votou em Donald Trump e que tende a estar contra esta América que encontro mais activista, mais politizada, mais feminista e mais negra. Como é que esta cultura com a qual me deparo de tantas formas, da inclusão e diversidade, da justiça social e racial, de uma sociedade civil, comunicação social como academia muito mais consciente das desigualdades e mais empenhada em desafiá-las se coaduna com a cultura que venceu as eleições no dia 8 de Novembro? Com tensão e uma coexistência mais difícil. Ambas as culturas estão mais expostas e mais opostas.

Uma das diferenças imediatas que notei ao chegar foi, de facto que, agora, há caras e nomes de mulheres e homens negros na capa da revista de Domingo do New York Times como na do Washington Post (na semana passada, sobre as dificuldades em definir o que é a identidade racial). Os jornais fazem entrevistas a afro-americanos das mais diversas áreas, da literatura à política ou academia. Há anúncios de televisão protagonizados por famílias negras e bonitas, a viver em casas confortáveis, ou publicidade em revistas e jornais com personagens negras a promover jóias, investimentos imobiliários ou seguros de saúde.

A grande diversidade social e cultural no interior da comunidade afro-americana contemporânea passou a ser mais evidente também na esfera simbólica das imagens. Apesar de Donald J. Trump ignorar tal diversidade nos seus discursos, referindo apenas a comunidade afro-americana a propósito do combate à insegurança urbana, com mais policiamento e mais intervenção. Nos painéis de debate, na CNN como noutros canais, nota-se uma clara consciência da representatividade assumida por negras e negros. A desculpa que o mérito é que interessa – aquela que continua a servir para justificar a hegemonia dos homens brancos com direito à palavra pública – há muito que deixou de convencer. O mérito de quem fala ou escreve nos meios de comunicação social interessa tanto como a diversidade de um país onde essa mesma diversidade é uma das suas principais características.           

Vinte anos depois, encontrei uma América mais negra. Ou melhor, uma América onde a história e a contemporaneidade das suas comunidades afro-americanas têm mais voz, mais espaço público, mais intervenção social e associativa. “Black”, “blackness”, “black identity”, “afro-american”, “african studies”, “africology”, “people of color”, “race”, “ethnicity” são palavras que estão por todo o lado, discutidas, faladas e escritas. Negociadas também. Como todas as palavras que remetem para identidades, são problemáticas, não são fixas e estão sujeitas a discordâncias. Exemplo disso é o espectáculo de stand-up comedy de Trevor Noah, também responsável por um programa diário humorístico na televisão americana. No African-American, ele reflecte sobre o significado de palavras e identidades através da sua própria experiência de ser um negro não-americano a viver na América – sul-africano, mãe negra, pai branco – ele queria que o julgassem um "afro-americano" mas na rua pensam que é "porto-riquenho" e falam-lhe em espanhol. Complicado? Sim. Nada que tenha a ver com identidades raciais na América é simples. Na consulta médica como em documentação oficial qualquer habitante é confrontado com uma lista de categorias raciais, com possibilidades de múltiplas combinações. Algures entre as categorias disponíveis e aquelas com as quais cada pessoa se identifica há espaço para muitas perguntas e muitas respostas.

Mas será possível combater o racismo sem falar de raça? As respostas legais, estatais e ideológicas têm sido distintas de país para país e existem explicações históricas para que assim seja. Toda a história americana é atravessada por categorias raciais quase sempre pelas piores razões – da escravatura dos séculos XVIII e XIX à segregação do século XX. Mas as categorias raciais também podem servir para mais facilmente identificar – e erradicar – discriminações e injustiças. E no século XXI tem sido esse o caminho.  

Foto
Estudantes da Howard University em demonstração de solidariedade pela morte de um adolescente negro pelas forças policiais CHIP SOMODEVILLA / GETTY IMAGES

Diversidade e inclusão na universidade

As questões discutidas sob estas categorias sempre foram centrais à história da América, mas agora encontram-se também em lugares onde antes não estavam e com uma força que se afigura inédita. Inclusão e diversidade tornaram-se palavras-chave na Brown, uma universidade que sempre teve uma tradição activista por parte dos seus estudantes, mas onde agora se nota uma institucionalização da própria intervenção social. Academia e activismo, academia e direitos humanos, academia e política contemporânea, academia e racismo, discriminação e escravatura. O mundo lá fora, contemporâneo e complicado, passou a estar mais presente no espaço – privilegiado e elitista – da universidade. As palavras difíceis são pronunciadas nas salas de aula, em conferências públicas e nas normas institucionais.

As questões étnicas e raciais, tais como as de género e orientação sexual, passaram a ser centrais naquilo que é a universidade enquanto instituição, nas associações de estudantes e nos conteúdos académicos das mais distintas áreas. As universidades de prestígio criadas nos séculos XVIII e XIX passaram a ter uma consciência cívica e de justiça social muito mais visível. Nem que seja para apaziguar os sentimentos de culpa de um sistema onde são evidentes as marcas de elitismo e distinção social, com um predomínio de estudantes brancos e prósperos.

Foi criado o Brown Center for Students of Color, espaço de encontro para a crescente comunidade de estudantes “de cor” que tanto podem ser norte-americanos de primeira geração na universidade, como estrangeiros prósperos de países estrangeiros que ali encontram uma identidade comum ou uma plataforma de debate para desafios partilhados. O Gabinete de Inclusão e Diversidade cria e monitoriza as normas que cruzam todas as vertentes da vida universitária. Enquanto vários centros de investigação promovem os estudos de questões raciais, onde dominam os Estudos Afro-Americanos, por serem aqueles mais centrais ao passado e ao presente norte-americano. O Departamento de Estudos Africanos, o Centro de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos, e o Centro para o Estudo da Raça e da Etnia na América são espaços de investigação que enquadram os percursos universitários dos estudantes da Brown, mas também são espaços de debate público com uma programação intensa de conferências, seminários, música e teatro.

Fotogaleria

Nos posters colados em vários espaços do campus (imagem acima), vêem-se os oradores convidados para falar. As caras de mulheres e homens negros deixaram de ser a excepção que eram há 20 anos, para passar a ser a norma de uma universidade que sabe que as escolhas de quem tem voz também são escolhas políticas. E que as muitas discriminações raciais que marcam o quotidiano da América precisam de ser contrariadas por outras narrativas. O Black History Month já não é só em Fevereiro.

Os esclavagistas fundadores

A história das mais prestigiadas universidades americanas é indissociável da história da escravatura. Foi com dinheiro feito com trabalho escravo que enriqueceram os homens que fundaram essas universidades e lhes deram o seu nome. É o caso da Brown. A diferença, agora, é que as universidades não só passaram a assumir as suas origens problemáticas como a transformaram em objecto de estudo. O Centro de Estudos de Escravatura e Justiça da Brown foi mais uma das novidades que encontrei. Nasceu da necessidade de fazer uma autobiografia da universidade nas suas ligações à escravatura e, agora, é muito mais do que isso – um centro de estudos e debate que demonstra como conhecer as injustiças do passado pode contribuir para promover a justiça no presente.

Foto
Ruth Simmons, primeira mulher à frente da Brown, primeira mulher negra à frente de uma Ivy League Getty Images

Craig Steven Wilder, professor do MIT e autor do livro Ebony and Ivy: race, slavery and the troubled history of America's universities, publicado em 2013, reconheceu como as primeiras vozes a questionarem as cumplicidades entre escravatura e educação elitista na América tinha partido de estudantes e não de professores. De facto, em 2001, em Yale, um grupo de estudantes de doutoramento emitiu um relatório independente a expor o facto de a universidade celebrar o seu papel no abolicionismo, mas omitir as suas ligações ao comércio de escravos. Dois anos depois, em 2003, pela primeira vez este reconhecimento veio das hierarquias superiores. A presidente da Brown, Ruth Simmons – primeira mulher à frente da Brown, primeira mulher negra à frente de uma Ivy League –, anunciou que a universidade ia empreender uma investigação profunda sobre as suas próprias ligações com a escravatura. A decisão fez notícia mas mais nenhuma universidade se sentiu compelida a partilhar o mea culpa. Até há duas semanas.

No dia 3 de Março passado, a Universidade de Harvard acolheu uma grande conferência sobre as ligações das universidades americanas com a escravatura. A iniciativa partiu de Drew Gilpin Faust, uma historiadora da Guerra Civil e do Sul dos Estados Unidos, que é a primeira mulher a presidir a Harvard. Já ninguém questiona a pertinência de estudar o assunto. Nem de reflectir sobre as suas implicações no presente. Mas nem todos estão de acordo com as respostas a dar. Chega investigar, estudar e denunciar? Ou há que passar da palavra à prática? A Universidade de Georgetown em Washington estabeleceu um programa em que dá prioridade de admissão aos descendentes das 272 pessoas vendidas pela universidade em 1838 para saldar os seus problemas económicos. Mas um historiador de Georgetown acha que isso não é suficiente: não deveria a universidade dar também bolsas de estudo àqueles descendentes que têm mérito para entrar mas não conseguem pagar as altíssimas propinas?

Cultura visual e estudos negros

A centralidade dos Estudos Negros na academia norte-americana não é, com certeza, alheia a um aumento significativo de professores universitários, mulheres e homens, negros, nos últimos anos. Também foi assim com os estudos feministas na década de 1970. Já existiam movimentos feministas activos desde o século XIX, mas só quando as mulheres entraram na academia norte-americana em números significativos é que as abordagens de género passaram a integrar os conhecimentos leccionados e publicados. Nem sempre pacificamente. As hierarquias de quem detém o conhecimento não são independentes das próprias hierarquias do conhecimento. Há temas de estudo que valem mais do que outros, mas essa valorização canónica também se vai alterando, sujeita ao contexto social e político e às identidades daqueles que têm acesso à construção do saber. Os estudos feministas como os estudos sobre a história negra norte-americana foram também objecto de muitas resistências, mas encontraram finalmente o seu lugar numa academia muito mais envolvida, onde professores e activistas podem (e devem) ser a mesma pessoa.

Em Fevereiro, passei quatro dias na conferência anual da College Art Association. Cerca de dez painéis simultâneos entre as 8h30 e as 19h fazem destas grandes conferências um espaço de intenso confronto com aquilo que se anda a fazer em diferentes áreas. Têm gente de todo o mundo, mas são dominadas pela academia norte-americana. Uma feira do livro junta tudo aquilo que de novo foi publicado pelas grandes imprensas universitárias. Há dez anos, em 2007, tinha vindo à conferência anual no mesmo hotel de Manhattan e um dos temas centrais fora o das abordagens de género à história da arte e à arte feminista, tal como as relações entre imagem, orientalismo e colonialismo. Dez anos depois, em 2017, as perspectivas de género estão mais do que integradas na disciplina. Porém, uma linha de investigação que surgiu em grande força foi precisamente a da junção entre cultura visual e estudos negros. Já não apenas no contexto dos estudos coloniais, mas em múltiplas direcções, geográficas, temáticas e temporais.

Foto
Black Lives Matter, movimento contemporâneo que nasceu como reacção à violência policial contra homens negros, foi criado por Alicia Garza, Opal Tometi e Patrice Cullors. Manifestante em protesto contra a presidência Trump (Fevereiro, Nova Iorque)

Eram 8h30 e a organizadora do painel congratulou-se por sermos tantos a assistir. Vários oradores, unidos sob o tema “Imagens de movimentos sociais da emancipação ao Black Lives Matter”, o movimento contemporâneo que nasceu como reacção à violência policial que continua a matar homens negros com uma frequência e uma leviandade perturbadoras. Um professor de Comunicação Social da Universidade de Nova Iorque estudou as imagens partilhadas nas redes sociais na sequência da morte de vários jovens negros nas mãos da polícia. Só em 2016, mais de 300 homens negros foram mortos por polícias que acabaram por não ser responsabilizados por isso (o diário britânico Guardian tem uma base de dados, The Counted, onde faz a contagem, em tempo real, do número de mortos pela polícia norte-americana). Estudar também é uma forma de denunciar. Outra investigadora-artista, a única branca no painel, apresentou o seu projecto sobre a violência perpetrada pelo Ku Klux Klan contra famílias negras do Tennessee em meados do século XX. Os documentos são quase nulos. A própria organização fez desaparecer as provas materiais da sua existência como forma de defesa.

Como é que se escreve a história quando não há arquivo? Como é que se constrói uma narrativa quando não existem documentos? Com formas criativas, aquelas que a história da escravatura e de outras manifestações da atrocidade humana têm explorado recentemente. W.E.B. Du Bois, o grande intelectual negro norte-americano que resumiu a sua vida a uma “autobiografia do conceito de raça”, publicou, já em 1896, um interessante livro sobre a escravatura sem ir ao arquivo, apenas com jornais e documentação governamental pública. Mais recentemente, Saidiya Hartman, professora em Columbia, escreve sobre escravatura numa junção criativa entre a sua própria experiência, a percorrer as geografias do tráfico de escravos, o arquivo histórico, a escrita ficcional e a releitura de documentação que estava publicada há muito mas nunca tinha sido lida daquela maneira. Muitos estudos recentes sobre violência sexual contra as mulheres no âmbito da escravatura como do colonialismo têm sido feitos assim: com historiadores – sobretudo historiadoras – contemporâneos que têm relido documentos e neles encontrado aquilo que as primeiras leituras – sobretudo de historiadores masculinos da geração anterior – tinham ignorado.               

Foto
Três gerações de Luther King numa fotografia de Richard Avedon na capa da "Aperture", uma escolha da académica de Harvard Sarah Lewis quando editou a revista em 2016

Finalmente, Sarah Lewis, professora de História em Harvard, falou sobre o número especial da prestigiada revista de fotografia Aperture, que foi convidada a editar em 2016. Chamou-lhe Vision & Justice e para uma das capas (a revista saiu com duas capas distintas) escolheu o retrato que Richard Avedon fez em 1963. Três gerações de Luther Kings, todos Martin de nome: o pai, o filho e o mais famoso, o activista do movimento de direitos cívicos que na década de 1960 ainda estava a contestar o racismo institucional e legal assegurado na Constituição norte-americana.

Lewis confirmou como as imagens contribuíam para desencadear movimentos políticos: hoje em dia, com o Black Lives Matter e as imagens de iPhone a partilharem a brutalidade policial contra negros, uns minutos depois de ela ter sido cometida; tal como no passado, quando a circulação maciça de uma gravura de 1788, que mostrava as condições desumanas em que os escravos eram transportados de barco, deu força ao movimento abolicionista.    

Foto
Gravura de 1788 mostra as condições desumanas no transporte de escravos getty images

Escravatura e visão

Num outro painel falava-se sobre “história da arte afro-americana” no século XIX. Muitos escravos trabalhavam dentro de casas repletas de pintura, espelhos ou mesmo fotografia. Qual a visualização possível por parte dos escravizados e que documentos a podem demonstrar? A narrativa de Hannah Crafts, por exemplo, uma escrava que fugiu do Sul para o Norte e escreveu aquela que é considerada a primeira novela de uma mulher afro-americana. A abordagem integra-se bem nos caminhos que a história da escravatura tem tomado: para lá de estudar apenas o “discurso sobre” a escravatura, contra ou a favor; para lá das abordagens económicas baseadas em listas de escravos e respectivo valor; para lá das formas de organização do trabalho nas plantações ou no espaço doméstico; também procurar as suas subjectividades. Pensar a pessoa escrava como pessoa humana, com pensamento, acção, sentimentos, emoções, gestualidade, resistência e, muitas vezes também, com acesso à palavra e à imagem.

Uma professora de Stanford analisou um daguerreótipo fascinante realizado em 1845 – uma mão fotografada como um fragmento isolado do resto do corpo pela moldura rectangular. Inscritas na pele duas letras, S.S., “Slave stealer”, “ladrão de escravos”, não como um acto heróico mas como o acto que serviu para punir Jonathan Walker, um branco abolicionista empenhado na libertação dos escravizados. Produzida no Norte abolicionista, a imagem destinava-se a ser vista no Sul esclavagista como parte da propaganda abolicionista que instigava os escravos à fuga e os donos de escravos à sua libertação. Uma outra doutoranda de Yale, negra, narrou o seu encontro com o objecto no arquivo – fotografias de soldados negros, desconhecidos, da Guerra Civil americana. Estão na Beinecke, uma das bibliotecas de Yale, o mesmo arquivo onde se encontram as fotografias e manuscritos de Harriet Tubman, mulher nascida escrava em 1822 que se tornou conhecida como abolicionista e defensora do voto das mulheres, enquanto liderava resgates de centenas de escravos do Sul da América para o Norte, onde a escravatura já não era legal.

O que fazer quando uma única fotografia – em mau estado e por isso a contrariar a possibilidade de visualização – representa o único vestígio da existência de um ser humano? Em vez de ultrapassar as limitações do arquivo e da materialidade da imagem, a desaparecer com a passagem do tempo, fazer dela objecto de reflexão, recorrendo a comparações com imagens produzidas noutros contextos políticos e temporais. Também de conflito. Uma fotografia do século XIX pensada ao lado de uma obra de 2014 do artista afro-americano Titus Kaphar, em que uns jovens negros levantam os braços de modo simbólico, numa manifestação na cidade de Ferguson contra a violência policial que levara à morte de Michael Brown no dia 9 de Agosto.

Foto
Estudantes manifestam-se pela morte de Michael Brown, o jovem desarmado morto por um elemento da polícia de Ferguson Samuel Corum/ Getty Images

Arte para uma sociedade mais justa

Um outro painel, no dia a seguir, voltou à contemporaneidade e à violência policial contra negros. Christopher Metzge, professor, branco, numa universidade pública de Baltimore de maioria negra, trabalhava com os seus alunos numa instalação conjunta quando, no dia 19 de Abril de 2015, se deu uma tragédia. Morreu Freddie Gray, o homem negro de 25 anos que entrara em coma dentro de uma carrinha da polícia a caminho da esquadra. O projecto artístico em que os auto-retratos fotográficos dos estudantes foram ampliados num muro abandonado da cidade tornou-se uma forma de luto colectivo, a dar expressão visual ao movimento Black Lives Matter. Depois de um Verão quente de protestos por parte da maioria negra da cidade, a polícia de Baltimore admitiu num relatório que a comunidade negra era objecto de formas discriminatórias de policiamento.

A arte como um modo de imaginar uma sociedade mais justa. Aaron Counts, educador negro, a trabalhar há muitos anos com jovens em risco, veio falar sobre o projecto Justiça Criativa, um programa que usa as artes como uma alternativa à encarceração, o destino de milhares de homens negros norte-americanos. Numa inversão de papéis, os jovens tiram retratos policiais – mugshots – aos polícias e juízes que aceitam participar. Muitas conferências versaram sobre a forma como artistas negros exploram na sua obra múltiplos aspectos da sua própria identidade, ou questões políticas contemporâneas e históricas que têm na raça o seu campo de batalha. Samantha Hill, 45 anos, a trabalhar com memórias fotográficas e orais de famílias afro-americanas, ou Arielle Julia Brown, aluna da Brown, que usa a performance para reflectir sobre a violência perpetrada contra escravos. Não no Sul distante, mas na Providence do século XIX, a capital do pequeno estado de Rhode Island, onde se encontra a universidade. O projecto começa em trabalho de arquivo e acaba na rua, nos espaços performativos onde essa violência teve lugar no passado.

É apenas um dos muitos projectos de investigação e artísticos que têm sido apoiados por instituições dedicadas a preservar a “memória pública e a herança cultural dos americanos escravizados” como a The Periwinkle Initiative ou a Equal Justice Initiative, com uma vocação mais contemporânea centrada nas desigualdades raciais: justiça, crianças na prisão, encarceração maciça e pena de morte. Os projectos a decorrer são inúmeros: um faz o mapeamento de lugares onde estão enterrados aqueles que nem na morte tiveram direito à dignidade; outro investiga os linchamentos que aterrorizaram as comunidades afro-americanas ainda no século XX. Entre 1936 e 1938, cada vez que um homem era linchado, activistas com sede em Nova Iorque erguiam uma bandeira a dizer “A man was lynched yesterday”. No ano passado, uma bandeira parecida voltou a surgir numa rua nova-iorquina pelas mãos de um artista – “A man was lynched by police yesterday”.  

Ao fim da tarde, a presidente da associação que organizara a conferência também falou de política, inclusão e cidadania perante as centenas de pessoas que enchiam a sala de baile kitsch do hotel. Dois notáveis artistas negros receberam distinções pelas suas carreiras: Kerry James Marshall, que acabou de ser alvo de uma grande retrospectiva no novo Met Bauer, sucursal do Metropolitan nova-iorquino, e assumiu como um dos seus objectivos trazer pintura de pessoas negras para os museus de arte, e Faith Ringgold, nascida no Harlem há 86 anos. O único sitio onde vi exposto um quadro dela foi no Museu de Brooklyn, onde daqui a pouco mais de um mês vai inaugurar a exposição We Wanted a Revolution: Black Radical Women, 1965-85, incluindo o trabalho de Ringgold e de outras mulheres artistas negras. No espírito de protesto que tem varrido o lado descontente da América, todos os participantes da conferência tinham sido desafiados a escrever, num post-it, o seu slogan pessoal e político. “Black”, “Art”, “Matters”, uma palavra em cada pedaço de papel.

O direito à auto-representação

Nas muitas abordagens que têm associado visualidade com escravatura, injustiça racial e movimentos cívicos negros, destacam-se os nomes de dois ex-escravos porque eles próprios perceberam a centralidade da fotografia nas suas causas abolicionistas. Sojourner Truth (1797-1883), escrava fugida, construiu uma carreira pública como abolicionista, feminista e oradora. Uma vida extraordinária, tal como a de tantas e tantos outros ex-escravos que puderam deixar documentadas as suas ideias e acções. Não sabia ler nem escrever mas cedo percebeu a força da imagem nos Estados Unidos, da década de 1860.

Foto
A ex-escrava Sojourner Truth não sabia ler nem escrever mas percebeu a força da imagem (Carte de Visite, c. 1864) getty images

As cartes de visite, pequenas fotografias, como o nome indica, no formato e dimensão de um cartão, já se tinham popularizado globalmente depois de inventadas em França. Mais barata e fácil, a nova tecnologia fotográfica democratizou o retrato que assim se tornou acessível a um número muito maior. Truth vendia o seu retrato resguardado com direitos de autor. Ao público que ia ouvir as suas conferências ou através do serviço postal. Sob a sua imagem uma frase impressa – “I sell the shadow to support the substance”, ou seja, “Eu vendo a minha sombra para pagar a minha substância”. A impressão fotográfica no papel servia para o seu sustento e, por sua vez, para apoiar a causa abolicionista à qual dedicava a sua vida pública. Fez uso dos instrumentos de modernidade a que teve acesso: a fotografia, os direitos de autor, o serviço de correios e a litografia. Não sabia escrever mas uma outra mulher, branca e simpatizante da causa, transcreveu a história da sua vida. Narrative of Sojourner Truth foi publicada logo em 1850 – no frontispício, um dos seus retratos fotográficos foi transformado em gravura litográfica.

Harriet Beecher Stowe, branca, abolicionista do Sul, a famosa autora do livro em que descreveu a violência do quotidiano sob a escravatura, A Cabana do Pai Tomás, escreveu em 1863 um artigo na revista Atlantic a narrar o seu encontro com Sojourner Truth. A personalidade carismática da ex-escrava teve muitas outras testemunhas. Numa convenção de mulheres sufragistas em meados do século XIX, Truth não era oradora mas apenas uma ouvinte sentada na audiência. Ao sentir que as mulheres negras não estavam a ser incluídas nos discursos emancipatórios a que assistia levantou-se interpelando as mulheres brancas presentes – “Não sou também eu uma mulher?!” A pergunta retórica antecipava aquilo que, cem anos depois, seria uma das críticas das mulheres negras aos movimentos feministas, protagonizados por mulheres brancas socialmente privilegiadas.

Como Truth, Frederick Douglass (1818-1895), escravo fugido em 1838, também compreendeu as possibilidades da sua imagem na propaganda abolicionista. As dezenas de fotografias suas mereceram-lhe o título do “americano mais fotografado do século XIX”. Mas, mais do que isso, teorizou sobre a fotografia em quatro conferências que intitulou Pictures and Progress. Face a uma cultura visual dominante em que os corpos negros eram destituídos de subjectividade, quando não eram mesmo transformados em caricaturas obscenamente racistas, Douglas compreendeu como o seu retrato – prova da sua dignidade e identidade única – servia como contranarrativa.

Foto
Para lá das leis e da política, o ex-escravo Frederick Douglass compreendeu a força dos poderes simbólicos: o direito à visualização; o direito à auto-representação (Daguerreótipo, c. 1855) Getty Images

A omnipresença dos seus retratos serve, de facto, para fazer frente às formas dominantes de representação das mulheres negras e dos homens negros, como escravos, ou como colonizados, dependendo das geografias; como “tipos”; como caricaturas; ou como objectos de estudo científico – como no arquivo de Louis Agassiz que se encontra num dos museus de Harvard. Douglass como Truth demonstraram como a fotografia – a nascer quando as estruturas opressoras da escravatura eram postas em causa, mas outras surgiam sob a forma do colonialismo moderno – foi apropriada de muitos modos e para narrar histórias distintas e mesmo contraditórias. Douglass compreendeu bem como, para lá das leis e da política, existia a força dos poderes simbólicos: o direito à visualização, mas também o direito à auto-representação. A literacia visual e o acesso à imagem como uma forma de cidadania. Daí a importância da circulação de imagens de mulheres e homens negros, livres, dignos, seres humanos, em contextos que os desumanizavam.

Frederick Douglass tinha outros instrumentos que Truth não teve. Além dos dotes de orador, tinha o dom da escrita. Em 1845, publicou a sua autobiografia partida ao meio. Uma primeira parte dedicada à sua vida enquanto escravo e uma segunda parte enquanto homem livre, capaz de escrever, reflectir e denunciar a primeira metade da sua biografia. O homem que fundou um jornal abolicionista foi o mesmo que em 1848 participou na primeira convenção norte-americana sobre os direitos das mulheres, por compreender que os mecanismos de opressão e as ideologias que os justificavam partilhavam da mesma “naturalização”.

Douglass já tinha consciência da relevância das imagens visuais para a emancipação afro-americana – cidadania e representação – mas talvez não imaginasse como ela ainda seria espaço de contestação mais de 150 anos depois. Depois de uma longa campanha recente, estava decidido que Harriet Tubman seria a nova cara da nota de 20 dólares e a primeira mulher negra. Porém, surgiu um obstáculo inesperado: o novo Presidente dos Estados Unidos da América. Donald J. Trump manifestou logo o seu desagrado por ser “politicamente correcto”, a expressão preferida para quem fica desconfortável com tudo aquilo que não implique a escolha de um homem branco.

Foto
O muito recente National Museum of African American History & Culture está esgotado para os próximos meses Kevin Lamarque / Reuters

O museu politiza-se

Na Conferência de Nova Iorque, uma curadora da Yale University Art Gallery, falou sobre “Making Black Lives Matter in Art Museums”. As questões de raça, tal como as de género, têm sido centrais aos debates da museologia e da curadoria e, sob o formato de exposições, têm sido feitas muitas das mais interessantes intervenções críticas. Muitos museus têm agora políticas activas de “inclusão e diversidade”, tal como as universidades, e fazem estudos internos, gestos de auto-reflexão que se pretendem transformadores. O aumento de curadores afro-americanos tem contribuído para o debate, mas a maior parte dos jovens negros, hoje, continua a não conceber uma profissão em instituições museológicas porque não vêem pessoas negras nesses lugares. E, como já está mais do que demonstrado, as imaginações de crianças e jovens precisam de modelos identitários para projectarem os seus próprios futuros.

Uma das ironias dos últimos meses é que as instituições que o trumpismo veio pôr em causa são aquelas que mais doações monetárias espontâneas têm recebido. Isso explica porque é que os museus sobre movimentos de direitos civis negros estão mais ricos e têm mais visitantes. Um novo turismo politizado está a encher o novo museu de Washington, o fabuloso National Museum of African American History & Culture, esgotado nos próximos meses. Mas também a ir a Memphis, ao National Civil Rights Museum, a Atlanta, ao Center for Civil and Human Rights como ao International Civil Rights Center & Museum, na Carolina do Norte. Muitos visitantes, sobretudo os mais jovens, observam o passado exposto com os olhos do presente: as marchas de Martin Luther King na década de 1960, ao lado dos protestos contemporâneos. Os museus também são espaços para pensar o presente.    

Foto
A activista feminista Angela Davis e a realizadora Ava DuVernay mostram como os legados de discriminação racial do passado subsistem no presente

Os muitos livros e artigos que se têm publicado nos Estados Unidos sobre a história da escravatura têm sublinhado a ideia de que a análise histórica tem de ir mais além do “pré-1865” e “pós-1865”. Foi nesse ano que Lincoln assinou a legislação que ditava o fim da escravatura. Antes desse momento, no entanto, muitas formas de resistência – escrita, oral, visual mas também gestual, emocional, física – já se tinham oposto à escravatura. Tal como depois de 1865, a ideologia e os mecanismos que tinham possibilitado a sua existência continuaram activos de outras formas. Até hoje. Quando, em finais de 2016, a realizadora de cinema afro-americana Ava DuVernay assinou o documentário sobre a encarceração maciça de homens negros, deu-lhe o nome de 13th precisamente por ter sido a “13.ª” emenda à Constituição americana a pôr fim legal à escravatura. O seu argumento é que as prisões norte-americanas institucionalizaram novas formas de escravatura, aquilo que a activista negra feminista Angela Davis anda a dizer desde a década de 1970. Tal como museus e exposições, academia, artes visuais e performativas, cinema e documentário, jornalistas e activistas têm demonstrado, os legados de discriminação racial do passado subsistem no presente. Porém, existe um número cada vez maior de vozes envolvidas na sua erradicação.

Há muitas esferas de poder, simbólico e efectivo, e todas estão interligadas. Obama foi Presidente, sim. A história comovente (negra e homossexual) do filme Moonlight ganhou o Óscar de Melhor Filme há umas semanas. O filme Elementos Secretos (Hidden Figures) protagonizado por mulheres, negras e cientistas, foi dos maiores êxitos de bilheteira só nos primeiros meses deste ano. Grande parte da academia e da comunicação social está empenhada em estudar o passado e o presente da grande parte do país que se auto-identifica como “black”, mais de 14% da população, mais de 46 milhões de pessoas. Mas ultrapassar alguns obstáculos não deita abaixo todos os outros, como acontece nas peças de um dominó. Inúmeras discriminações raciais continuam activas no quotidiano norte-americano, com a agravante de agora terem um governo que as legitima, desprezando e temendo a cultura da “inclusão e diversidade”. A comunidade afro-americana foi, entre as designadas minorias, a que menos votou em Donald J. Trump, 94% das mulheres negras votaram em Hillary Clinton. Serão estes próximos anos um retrocesso? Ou, pelo contrário, o activismo politizado que desde dia 8 de Novembro tem despertado em todas as frentes servirá para construir uma América mais justa, mais igualitária, mais inclusiva? Na academia como no activismo da sociedade civil, o empenho é bem visível.  

* Historiadora. Investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e professora visitante na Brown University 

Sugerir correcção
Ler 33 comentários