A Coreia do Sul senta no banco dos réus os vícios da sua política e negócios
O herdeiro da Samsung começa a ser julgado num caso de corrupção que envolve a própria Presidente do país, que no dia seguinte sabe se vai ser destituída. Entretanto, Kim Jong-un vai aumentando a pressão.
A uma crise política junte-se a queda de um dos principais empresários da mais importante multinacional do país e polvilhe-se com um vizinho agressivo e em processo de acelerado desenvolvimento de armamento nuclear. Eis a receita que envolve a Coreia do Sul num dos momentos mais sensíveis da sua história recente.
O calendário é vertiginoso. Esta quinta-feira começa a ser julgado o herdeiro do império da Samsung, Lee Jae-yong, acusado de corrupção e desvio de dinheiro, naquele que já foi descrito como o “julgamento do século” no país. No dia seguinte, o Tribunal Constitucional vai revelar a sua decisão quanto ao processo de destituição da Presidente, Park Geun-hye, que se pode tornar na primeira líder sul-coreana afastada nestas circunstâncias.
Os escândalos que envolvem a Samsung e a Casa Azul, residência oficial da presidência, têm o seu ponto de intersecção numa mulher – Choi Soon-sil. Foi a sua relação de amizade próxima com Park que esteve na origem da actual crise política. Tudo começou com a revelação, por parte de um canal de televisão, de que a Presidente terá pedido a Choi sugestões para discursos, dando-lhe acesso a informações confidenciais, apesar de a amiga não ter qualquer cargo na administração presidencial.
O que de início parecia sobretudo um caso preocupante, com um lado caricato – o pai de Choi, um obscuro líder religioso, desenvolveu uma amizade com contornos semelhantes com o pai de Park, que na altura também era Presidente do país – depressa assumiu proporções catastróficas. Uma investigação judicial descobriu que Choi, através de um conjunto de organizações e fundações por si geridas, utilizava a sua proximidade com Park para obter somas avultadas junto de alguns dos mais relevantes empresários do país que, por seu turno, procuravam acesso privilegiado à Casa Azul.
Um deles terá sido Lee Jae-yong, o homem que em breve se preparava para assumir a liderança da Samsung. Os investigadores suspeitam que Lee terá pago cerca de 43 mil milhões de won (35 milhões de euros) a organizações geridas por Choi, incluindo a compra de um cavalo de corrida oferecido à filha de Choi. Lee pretendia uma intervenção política que viabilizasse uma fusão entre duas empresas do grupo que se concretizou em 2015 e abriu caminho à sucessão.
Na Coreia do Sul é longa a história das íntimas e controversas ligações entre os grandes conglomerados familiares, conhecidos como chaebol, e o poder político. Todos os líderes do período democrático viram o seu nome envolvido em casos de corrupção, mas nunca, até agora, de forma directa. Durante vários fins-de-semana, uma das maiores avenidas de Seul encheu-se com milhões de pessoas que pediam a demissão da Presidente. Desde os protestos do início dos anos 1980 que levaram à queda da ditadura militar que não se via uma mobilização popular desta dimensão.
Park pediu desculpas em várias ocasiões, mas resistiu aos vários apelos para se afastar. No início de Dezembro, uma maioria de 234 deputados, incluindo algumas dezenas da bancada do Saenuri (conservadores) de Park, votou a favor da abertura de um processo de impeachment, retirando-lhe de imediato os poderes presidenciais.
No total, o procurador-especial que liderou as investigações, Park Young-soon, pediu acusações para mais de 30 pessoas, entre empresários e funcionários da administração presidencial. De fora parece ficar apenas a própria Presidente, protegida pela imunidade inerente ao seu cargo. Mas isso pode mudar já esta sexta-feira, caso uma maioria dos oito juízes do Tribunal Constitucional decidam a favor da sua destituição. O procurador considera haver provas suficientes para acusar Park de ter recebido subornos de várias empresas, em conluio com Choi, assim que a imunidade for levantada, segundo o New York Times.
Situação regional perigosa
A instabilidade interna sem precedentes na Coreia do Sul surge numa altura em que Seul “lida com um contexto regional crescentemente precário”, escrevia recentemente Scott Snyder, especialista do Council on Foreign Relations. A ameaça existencial que representa a Coreia do Norte não é uma novidade, mas a sua assertividade recente tem causado mal-estar em Seul. O regime de Kim Jong-un dá sinais de continuar em passo acelerado o desenvolvimento das suas capacidades nucleares – o objectivo imediato é atingir a possibilidade de miniaturizar ogivas nucleares para que possam ser transportadas por mísseis balísticos. A generalidade dos analistas não considera que Pyongyang esteja prestes a consegui-lo, mas o regime tem intensificado o número de ensaios nucleares e de lançamentos de mísseis, deixando a região num estado de nervos permanente.
O vácuo de poder na Coreia do Sul coincide com a transição da nova Administração norte-americana. Um período que é já tradicionalmente relevante para as chancelarias asiáticas que têm em Washington o garante da sua segurança torna-se ainda mais fundamental perante as interrogações que Donald Trump levantou quanto à continuidade do apoio militar prestado à Coreia do Sul e ao Japão. A posição do novo Presidente suavizou-se entretanto, especialmente depois de um dos mais recentes ensaios balísticos norte-coreanos ter coincidido com a visita do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, aos EUA. Mas ao contrário de Abe, que já reuniu com Trump duas vezes, a Coreia do Sul continua ausente da agenda do novo Presidente norte-americano.
O início da instalação do sistema antimíssil norte-americano (THAAD, na sigla original) também vem levantar um problema incómodo para Seul. Se, por um lado, representa uma garantia de segurança perante a Coreia do Norte, por outro ameaça fazer ruir as relações entre a Coreia do Sul e a China, que encara o THAAD como uma provocação. A resposta de Pequim passou pela expulsão de um grupo de missionários sul-coreanos do país, a recusa de emissão de vistos a estrelas da música pop coreana e por impedir as agências de viagem chinesas de organizarem visitas a Seul – é da China que vem o maior número de turistas estrangeiros que visitam a Coreia do Sul, segundo a Quartz. Ao longo de todos estes processos, escreve Snyder, “a Coreia do Sul continuou em piloto automático sem um sentido concreto de direcção política”.