Há alegria no Beato... e não só. As vilas de Lisboa vão ter nova vida
Guilhermina está farta de viver sem condições, Ondina tem baratas e ratos em casa, Ana Maria lamenta a solidão. A Câmara Municipal de Lisboa vai fazer obras nas tradicionais vilas da cidade para as tornar atractivas aos jovens.
Só havia uma árvore na vila. Nasceu por entre as falhas da pedra calcária quando o fontanário caiu em desuso, cresceu talvez por indiferença de quem assistiu ao fenómeno, ali ficou teimosa a resistir à aridez do que a circundava. Tal como o pátio de cimento que habitou durante anos a fio, esburacado e esquecido, a árvore definhou. E morreu.
Não se dá pela Vila Romão da Silva a menos que se esteja especificamente à procura dela ou muito atento às paredes da rua. Entalado entre um prédio de quatro andares e uma casa térrea cor de vinho, um discretíssimo portão de ferro verde é a única entrada para um cenário improvável em Campolide.
As casas de apenas dois andares da Vila Romão da Silva são de outro tempo, de quando o bairro tinha fábricas e operários, os primeiros ocupantes dos 37 fogos que aqui existem. “Não fazia sentido termos um património destes e não o reabilitar”, diz Paula Marques, vereadora da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa, junto aos destroços do antigo fontanário e do toco da árvore.
Deste local, bem no centro do pátio de cimento, vêem-se vários prédios com mais de quinze andares de um lado, espreitam as torres das Amoreiras do outro. Uma centralidade que a vereadora diz querer aproveitar para atrair uma população mais jovem à vila – que tem actualmente 13 casas devolutas. “Temos estado a falar do esvaziamento do centro da cidade, a reabilitação desta vila é um sinal e um marco”, comenta.
A autarquia está a trabalhar num programa de recuperação de 33 vilas e pátios de Lisboa cujo objectivo é resgatá-los ao esquecimento e torná-los habitáveis – para quem já lá mora e para quem queira lá viver. Os primeiros sete locais a ter obras já estão escolhidos: a Vila Bela Vista (Beato), a Vila de Paulo Jorge (Belém), a Vila Elvira e a Vila Romão da Silva (ambas em Campolide) começam a ser intervencionadas já este ano; o Pátio do Beirão (Marvila), o Pátio dos Bastos (Estrela) e o Pátio do Paulino (Alcântara) ficam para 2018.
Guilhermina Silva, encostada ao parapeito da janela, quer ver para crer. “Passei o pão que o diabo amassou nesta casa. E continuo a passar”, declara em voz bem alta para que Paula Marques a oiça. A vereadora, que levou um grupo de jornalistas a conhecer as alterações previstas para a Vila Romão da Silva, aproxima-se para ouvir as queixas. “Tenho duas fossas dentro de casa, tenho as janelas numa vergonha.” Lamentos que, alega, têm caído em saco roto junto da câmara, dona de toda a vila. “Vão medindo, vão vendo as paredes, fazem isto, fazem aquilo e não fazem nada!”
Paula Marques tenta acalmá-la e explica o projecto. A tal casa cor de vinho à entrada da vila, que alberga o Teatro de Palmo e Meio e o Sport Lisboa e Amoreiras, vem abaixo. No seu lugar será construído um novo edifício para as duas instituições, que se prolongará, com um anfiteatro, para o pátio da vila. Mais importante para Guilhermina Silva e para a vizinha Ondina, que se queixa de ter a casa cheia de “baratas, ratos, tudo”, é que a câmara promete igualmente reabilitar as habitações a fundo, por dentro e por fora. “As condições [actuais] não respondem às necessidades que temos em termos de comodidade e conforto”, admite a vereadora.
José Pinto, que criou o Teatro de Palmo e Meio há 30 anos neste local, admite que, provavelmente, não vai conseguir não se emocionar quando vir a casa ser demolida. Ele e a filha, Fátima Pinto, queriam que o exíguo espaço do teatro tivesse obras, mas nunca julgaram que elas tivessem esta dimensão. Depois da desconfiança inicial e da tristeza por antecipação que já sentem, afirmam agora que estão ansiosos para que os trabalhos arranquem. Não passa deste ano, garante-lhes Paula Marques.
As obras na Romão da Silva vão custar perto de dois milhões de euros, o investimento mais avultado do primeiro grupo de sete intervenções, cujo custo total deverá rondar os oito milhões. “Estes pátios e vilas estiveram sem destino mais de vinte anos”, entre a degradação crescente e a ameaça quase permanente da demolição definitiva, afirma a vereadora, que explica o que já dissera ao PÚBLICO em Outubro: “Uma das coisas que queremos promover é a intergeracionalidade entre quem cá vive e quem vier de fora.”
Ou seja, pôr jovens ou casais em início de vida comum a morar lado a lado com Ana Maria Tavares e o marido, que há 45 anos habitam uma casa de paredes brancas na Vila da Bela Vista, freguesia do Beato. Apesar do nome, a paisagem da vila é de apenas prédios mais altos construídos em épocas posteriores e, de um determinado local, o Cemitério do Alto de São João. Não é isso que desanima Ana Maria Tavares. “Isto está uma miséria”, diz a moradora da vila, composta por dez casas que ladeiam uma pequena rua. “Era uma alegria quando havia aqui crianças. Agora chega às sete horas, a gente enfia-se em casa e pronto".
Aqui, a câmara já recuperou três das seis habitações de que é dona. As restantes, de proprietários privados, vão apenas ser pintadas por fora quando avançar a reabilitação do espaço público, em Maio. “Cada intervenção destas é um grande desafio para um arquitecto”, sorri João Gomes Teixeira, o homem que assina os projectos, referindo que teve de estudar a história de cada vila para pensar em obras que não chocassem com o existente nem desvirtuassem a identidade dos locais. Todas as casas desta vila, por exemplo, vão ser pintadas de cor ocre, tal como eram originalmente. Mais uma vez, nada que inquiete Ana Maria, da casa de paredes brancas. Ela só quer ver juventude por ali. "É uma alegria aqui para a gente", desabafa.