Mário Soares, uma vida marcante
Disputou a hegemonia, portanto nunca desistiu do seu ponto de vista e proposta. Não há lição mais duradoura e mais sábia desta vida de um político inteiro que nos deixou.
“Já toda a gente votou contra mim, já toda a gente votou em mim” – com estas ou outras palavras, era assim que Soares resumia, folgazão, uma parte da sua vida. Com razão e graça. Teve os melhores e os piores amigos, fez guerras úteis e inúteis, perdeu tempo e ganhou tempo, aliou-se e opôs-se, privatizou e criticou as privatizações, liberalizou e criticou o liberalismo, foi primeiro-ministro, foi Presidente e mesmo depois disso candidato para perder, mas foi por isso mesmo uma das figuras mais marcantes do século XX português e, uma vez retirado da política activa, não se calou nestes tempos de sombras e nevoeiro.
Vimo-lo nestes anos nas manifestações dessa terceira potência mundial, a opinião pública que se levantou contra a cimeira Bush-Aznar-Blair-Barroso para invadir o Iraque, ouvimo-lo na Aula Magna a condenar a troika e a pedir eleições, ouvimos a sua indignação contra a “finança que mata”, nas palavras de Francisco que citava com gosto, tal como tornou notória a sua hostilidade aos dirigentes europeus que conduziram o ataque contra a Grécia ou contra o nosso país, ele que tinha sido o principal responsável pela adesão portuguesa à União Europeia.
O resto é sabido: adorava dar conselhos e perguntar, matreiro, sobre esta ou aquela iniciativa política, queria conhecer toda a gente. Temo no entanto que algum comemorialismo tenda a simplificar ou a endeusar o homem ou, como tantas vezes em Portugal, a não saber resistir à tentação de resumir a sua vida aos encontros entre o homenageado e cada evocador. Nada seria mais pobre. Soares merece outra perspectiva, tanto mais que foi único entre a sua geração.
Em duas facetas da sua vida, era mestre. No faro político, na capacidade de antecipar, na percepção de movimentos subterrâneos, mesmo quando se adaptava. No seu tempo, ele soube tudo e todos, pois foi o primeiro estadista da era da televisão, do Parlamento e do jogo de influências. Em segundo lugar, e mais importante, Soares soube sempre que a política é a criação da relação de forças. Quem quer dirigir não se subordina, as alianças não podem ser forma de submissão, o fim conta mesmo para escolher os meios. Disputou a hegemonia, portanto nunca desistiu do seu ponto de vista e proposta. Não há lição mais duradoura e mais sábia desta vida de um político inteiro que nos deixou.