O homem que nunca se deixou abater
Antes de passarmos à análise histórica ou política, a melhor homenagem que poderemos fazer a Mário Soares é guardar esse espírito da sua vida.
Nos primeiros dias de 2006 um telefonema de um amigo a precisar de ajuda levou-me à última campanha presidencial de Mário Soares. Havia pouca gente na sede. O candidato andava pelo país. As sondagens eram más. Fui ficando para fazer o que pudesse. Um dia — creio que era o sábado de reflexão antes do voto — abro a porta para entrar numa reunião e estava lá Mário Soares, que eu nunca tinha conhecido antes.
A certa altura, antevendo os maus resultados do dia seguinte, disse-nos algo assim: “Vocês não se preocupem comigo, nem pensem que eu vou andar abatido a partir de segunda-feira. Na verdade, eu nunca estive deprimido um único dia da minha vida. Nem sei o que é isso.”
A história impressionou-me não só pelo seu lado pessoal — nessa altura, Mário Soares era uma figura evidentemente mítica da nossa democracia, Presidente duas vezes e reeleito com 70% dos votos, que não precisaria de andar numa campanha eleitoral com muitas probabilidades de correr mal — mas porque me perguntei desde então se esta característica de Mário Soares, tal como ele a descreveu, não nos dará alguma chave para a interpretação do seu percurso político. Como poderia alguém que viveu desde os dois anos de idade num regime que abominava e que conheceu a repressão e a censura, a prisão, o degredo e o exílio durante os 48 anos seguintes nunca ter estado abatido? Provavelmente a pergunta está mal feita: é porque nunca esteve abatido que ele conseguiu não só gerir a sua história pessoal de resistência como fazer algumas das escolhas políticas estratégicas que ajudaram a determinar também a nossa história coletiva.
Mário Soares era guiado por um otimismo inato em relação à humanidade e a Portugal, apesar de ter visto a humanidade massacrar-se e o nosso país vicejar na miséria e na ignorância durante os melhores anos da sua vida. Talvez tenha sido esse otimismo que lhe permitiu lançar-se com uma vintena de camaradas na construção de um partido político nos últimos anos da ditadura e propor para Portugal, já em democracia, uma visão europeia que — longe de ser consensual — foi suficientemente mobilizadora para conquistar uma maioria de portugueses.
Dito assim, parece linear. E não foi. Mário Soares continuou a precisar de não se deixar abater quando foi um primeiro-ministro impopular ou quando partiu para uma campanha presidencial — a primeira — com sondagens que desencorajariam qualquer outro. Mas o “não se deixar abater” que para nós pode ser um esforço seria para ele como respirar.
Um exemplo: um dia Soares contou-nos uma história hilariante sobre uma confusão entre ele ter na sua posse uma bomba para a asma (de que tinha sofrido em jovem) e a polícia acreditar que ele tinha uma bomba verdadeira. Enquanto ele prosseguia, nós ríamos à gargalhada. No meio do riso e do choro, nem reparei que era uma história sobre ser espancado por polícias na 11.ª esquadra de Lisboa. Até numa história dessas Soares tinha a capacidade única de estar a ver a história do lado de fora, com um olhar irónico, enquanto lutava para a mudar do lado de dentro.
Desculpem ser tão idiossincrático na minha rememoração. Mas nos próximos dias vamos lembrar Mário Soares de muitas maneiras. Muitos textos se escreverão acerca do seu impacto na nossa história, da sua importância política, daquilo que lhe devemos a ele como a outros combatentes pela liberdade. Seria impossível resumir tudo isso aqui. Concentro-me por isso na forma como Soares por vezes se descrevia a si mesmo: o anti-Salazar. Não só anti-salazarista, note-se, mas sobretudo o oposto polar de tudo o que Salazar era e representava da soturnidade e desesperança do Portugal reprimido. Soares fazia questão de ser o contrário disso, e deu o seu melhor para que pudéssemos também coletivamente ser o contrário do que a ditadura desejou para nós. O anti-Salazar. Anti-fatalismo. Anti-pequenez. Anti-derrotismo. Anti-fechamento. Agora teremos de apreender a ser tudo isso sem a sua presença, mas com a sua memória. Antes de passarmos à análise histórica ou política, a melhor homenagem que lhe poderemos fazer é guardar esse espírito da sua vida.