Os pulmões de Paulo foram para o lixo
Como é possível alguém desaprender de respirar? Aconteceu-lhe a ele. No dia em que, depois do transplante dos pulmões, lhe cortaram o oxigénio “parecia um peixe, parecia um parvo”. Tiveram de lhe dar instruções: “Abra a boca, feche a boca, faça como se tivesse uma vela à frente.”
“Venha andando, que hoje pode vir a ser transplantado”, ouviu Paulo Renato Silva. Quando lhes telefonam, é sempre assim, uma hipótese. A frase cautelosa é repetida, quase à mesma hora, a outras pessoas. Para o mesmo par de pulmões são chamados três ou quatro doentes. Vêm de todo o país e têm umas quatro horas para chegar a Lisboa. Paulo estava em Faro.
No grupo dos convocados pode haver quem precise dos dois pulmões, quem precise apenas do esquerdo, ou do direito. Quem seja alto, baixo, pessoas com diferentes grupos sanguíneos. Chamam-se vários doentes para aumentar as probabilidades de que haja pelo menos um doente objecto de transplante nesse dia, explica José Fragata, director do único centro cirúrgico do país que faz transplantes pulmonares, no Hospital de Santa Marta, em Lisboa. Actualmente, diz, há cerca de 40 doentes à espera.
Há vezes em que os doentes voltam todos para casa. Além da questão da compatibilidade, os pulmões são, de todos os órgãos que podem ser transplantados, os mais “melindrosos”, aqueles que mais facilmente se “estragam” na espera. Para que se perceba: são transplantados 80% dos rins e fígados disponíveis, 50% dos corações. Dos pulmões apenas se consegue usar 25%, explica José Fragata.
Este é de todos os transplantes o mais complexo de executar. Em Portugal, o programa começou em 2001 (antes disso, era preciso ir a Espanha). Os doentes a quem foi feito um transplante de pulmão são apenas 160. Um quarto acaba por morrer, à espera, diz José Fragata, número que é válido para Portugal e para o mundo.
Quando são chamados, cada um deles já sabe que há outros a aguardar. Não sabem quem são. Ficam em quartos separados, sem se verem, para não se criar aquele clima “ficas tu com os pulmões e eu não fico”, recorda Paulo. Quando chegam ao hospital, têm de se lavar com três soluções assépticas e ali ficam, perfeitamente desinfectados, com uma daquelas batinhas de hospital com fitinha de atar atrás. Todos, prontos.
Daquela vez em que foi de Faro para Lisboa, Paulo esperou umas quatro horas para saber que os pulmões não iam para ele. Só um dos disponíveis era aproveitável, ele precisava de dois. Tirou a bata, vestiu-se e voltou para casa.
Paulo Renato Silva, 45 anos, tem as analogias treinadas, nota-se que as deve ter repetido muitas vezes. Quando tem de explicar a sua doença, a bronquiectasias, diz que é como se os seus brônquios fossem “uma mangueira” que começou a ficar entupida com tanta expectoração acumulada. Os seus pulmões ficaram como aquelas esponjas velhas que não voltam a inflar até à forma original.
A vida por um fio. Há frases gastas, mas esta, para ele, funcionava ao contrário. Não aguentava mais estar preso a um fio. Podia sair à rua, mas sempre com o oxigénio pendurado ao ombro. E não aguentava os olhares, lembra aquela vez, no supermercado... Isolou-se em casa, online podia jogar com pessoas que não o viam. Em videojogos, aventurava-se no Tomb Raider, jogava futebol no Fifa.
“A vida presa por um fio” foi o nome que deu ao seu testemunho em Por detrás de Um Pulmão (edições Mahatma), um livro recentemente lançado, da autoria de Ana Ribeiro, a assistente social do Santa Marta que acompanha o programa de transplante pulmonar e que decidiu reunir experiências de doentes e de membros da equipa envolvida nos transplantes. Para Paulo, ligado ao oxigénio, chegou um tempo em que a ideia de morte, do que podia fazer para terminar a vida, aparecia mais vezes do que a esperança de um dia lhe atribuírem uns pulmões novos. "Quando nos propõem um transplante, quer dizer que estamos a morrer.” E ele sentia que estava a morrer.
Como é que uma pessoa que era segurança de profissão e que praticava boxe, quase não tinha força para se curvar e atar os atacadores dos sapatos? Um homem como ele — “um durão” —, assim.
“A gasolina não dá para chegar a Lisboa”
“Venha andando, que hoje pode vir a ser transplantado.” A frase repetida de novo. Foi em 2014, tinham passado quase dois anos desde que tinha entrado para a lista de espera.
O tempo conta, por isso, os bombeiros voluntários da área de residência do doente estão alertados e são eles que transportam, de ambulância, o candidato para o possível transplante. Pode mesmo ser preciso fazer intervir as autoridades para abrir caminho no trânsito. Por isso, ainda foi mais estranho o que lhe aconteceu. Quando estavam a chegar a Lisboa — durante o caminho, ligaram-lhe do hospital a perguntar: “Onde é que vêm?” —, o condutor da ambulância saiu-se com um: “A gasolina não dá para chegar a Lisboa.” “Se tivesse força, o motorista tinha levado…”
“Íamos na A1”, e o motorista não só saiu da auto-estrada, como foi à procura de uma bomba de gasolina que tinha de ser da marca do cartão que ele tinha, por mais que Paulo lhe dissesse: “Eu pago, passe numa bomba qualquer.”
Ainda chegaram a tempo. Desinfectou-se, batinha ridícula. E ficou naquele talvez. Paulo tem 1,80 de altura, tinha de ser um dador tão alto como ele, de um grupo sanguíneo “que é um problema, o RH negativo”. Eram 19h30 e a médica entrou e, com muita calma, disse-lhe: “Foste tu o escolhido.”
Paulo sabia que no quarto ao lado estava uma rapariga à espera daqueles pulmões, tinha-a reconhecido da consulta, era muito jovem. Mais tarde soube que se chamava Alexandra e que os seus pulmões chegariam uma semana depois dos seus.
Num dos outros quartos de isolamento, para onde vão os doentes depois do transplante, houve um dia em que correram as cortinas. Quando as voltaram a abrir, a cama estava vazia. A doente a quem haviam feito o transplante tinha morrido. Nunca soube o seu nome.
Paulo nem sabe como se aguenta passar por aquela fase a seguir ao transplante. A psicóloga que acompanha o programa, Nélia Rebelo da Silva, explica no livro que esta fase em cuidados intensivos é tão intensa que não é raro haver doentes que acabam por sofrer de stress pós-traumático. Como nas guerras.
Paulo esteve 42 dias isolado, entubado, drenado, passou por muitas fases. Sentiu muitas coisas. Teve aluncinações. Viu o Patinhas e o Pateta e um dia também apareceu o Luisinho, tudo da Disney, todos a cirandarem no tecto do quarto, a sorrirem-lhe, a fazer-lhe gestos, a brincar uns com os outros. Animaram-no.
Nada disso vem escrito no seu relatório de alta. No final das duas páginas em que se descreve, em encriptada linguagem médica, tudo o que passou e o que lhe foi feito, chega uma frase entendível: “Com necessidade progressivamente menor de suplemento de oxigenoterapia…” Paulo lembra-se do manípulo do aparelho ao lado da cama com algarismos que foram decrescendo — 6, 5, 4, 3...
Um dia anunciaram que iam desligá-lo do oxigénio. Para ele poder respirar sozinho com os novos pulmões. Os que tinham bronquiectasias foram para o lixo. E não é que ele não sabia como respirar! “Tinha desaprendido. Estava tão habituado a ter ajuda. Parecia um peixe, parecia um parvo.” Tiveram de lhe dar instruções: “Abra a boca, feche a boca, faça como se tivesse uma vela à frente.” E ele conseguiu. O relatório médico termina dizendo: “Encontra-se sem necessidade de suporte de O2.” “Foi um dia inesquecível.”
Parece simples, quase mágico: deita-se fora o órgão doente, coloca-se um órgão sadio e fica-se automaticamente saudável? Não é bem assim. O transplante pulmonar é uma das mais complexas e exigentes cirurgias, como diz José Fragata. Há doentes que desistem em cima da hora. E isso é aceitável, escreve a enfermeira-chefe da cirurgia cardiotorácica, Clara Vital, “a voz por detrás do telefone”.
No final de tudo, não se fica magicamente são. O que a enfermeira explica no livro é que estes doentes “trocam uma doença por outra”. Deixam para trás uma doença muito grave que os incapacitava e que os estava a matar, mas ser objecto de um transplante é uma condição.
De manhã Paulo toma seis comprimidos imunossupressores, às 10h00 antibiótico, ao almoço imunossupressores, à noite quatro imunossupressores. Total: 14 comprimidos para enganar o organismo. José Fragata explica que os doentes tomam medicamentos para manter “a imunidade adormecida”. “O organismo reage a tudo o que é estranho”, e uns pulmões vindos de fora seriam entendidos pelo sistema de defesa como “um corpo estranho”. A implicação é que, no processo, também a resistência às infecções baixa. E, ao contrário de outros órgãos transplantados, como o coração, que está naturalmente protegido dentro do corpo, os pulmões estão virados para o exterior, com a respiração, e são por isso mais vulneráveis, explica o médico.
Pulmões de criança
Encontramos Sandra Costa, 34 anos, na sala de espera do Hospital de Santa Marta. Veio de Évora para a sua consulta de acompanhamento. Foi sujeita a um transplante em Fevereiro de 2015. Tem uma máscara que a protege de bactérias que possam andar no ar e que ela, por ser mais frágil que as outras pessoas, pode apanhar. Da última vez que estivera numa consulta de rotina apanhara uma bactéria e acabara por ficar sete dias internada.
No dia em que falamos com ela, sente-se bem, nada faz prever problemas, até que a médica lhe diz que pode haver um início de rejeição dos pulmões e a conversa fica interrompida, tem de fazer novos exames. E, no entanto, não parece preocupada. Desdramatiza tudo, porque tem muito presente o ponto de partida: antes do transplante esteve internada três meses, deixou de conseguir tomar conta dos filhos, sofria de uma doença com um nome complicado – bronquiolite obliterante com hiperinsuflação.
Sandra é “pequenina”, mede um metro e meio, quando estava à espera do transplante, sempre se comentou em consulta “que ia ser difícil arranjar-lhe uns pulmões”, teriam de vir de alguém do seu tamanho. A médica dizia-lhe que “em princípio teriam de ser de criança”.
Isso às vezes incomodava-a, pensar que fora preciso um menino (Sandra tem dois filhos) morrer para ela viver, que teria dentro de si os pulmões de uma criança. Ainda tentou perguntar: “Foi uma criança?” “Nem tente”, respondeu-lhe a médica. Tem razão. “É melhor não saber.”
Os filhos de Sandra dizem que, depois do transplante, a mãe voltou diferente – que ficou “toda dahhhh”. Tudo começou naquela primeira vez em que foi passear com os dois de carro e ficou tão encantada com as estrelas da noite no céu, tão encantada, pasmada mesmo. Os filhos, adolescentes, responderam-lhe: “Mãe, por favor, aquilo são estrelas como há todas as noites!” Queria tanto que eles também ficassem “todos dahhhh”, que olhassem o mundo como ela agora o olha, tão encantada. “Não é possível, mas eu gostava tanto.”