Algumas paragens entre os portugueses deste Doclisboa
Há 12 filmes portugueses em competição na edição 2016 do Doclisboa, que começa esta quinta-feira. Entre eles encontramos as mulheres do mar com que Cláudia Varejão foi mergulhar no Japão, o espectador de cinema dos nossos dias tal como o quis fixar Edgar Pêra e um sobrevivente, Cruzeiro Seixas.
Doze filmes, indiscriminadamente de curta e longa-metragem, compõem a secção competitiva dedicada à produção portuguesa no Doclisboa 2016, que se inicia esta quinta-feira. O que se segue é um roteiro por algumas paragens do programa, e apenas “algumas” porque nem todos os filmes estavam disponíveis para visionamento antecipado (pelo menos em tempo útil), que de qualquer modo não dispensa o espectador de fazer aquilo que se pede a um espectador de festivais: que siga à aventura e entre o reconhecimento e a descoberta faça o seu caminho pelas muitas sessões do programa.
Paramos primeiro, e sem ironia nenhuma, no Japão. Para falar de Ama-San (São Jorge, dia 22, às 18h45; Culturgest, dia 24, às 10h30), um filme que a realizadora portuguesa Cláudia Varejão foi realizar ao país do Sol Nascente. É uma obra extremamente cuidada, e provavelmente a nossa preferida de entre os filmes que pudemos ver desta secção. O seu objecto são as ama (palavra que em japonês significa algo como “mulheres do mar”), que correspondem a uma velhíssima tradição das zonas costeiras do Japão: são mergulhadoras, mulheres dedicadas à arte de perscrutar o fundo do mar em busca dos tesouros que este costuma conter (como as pérolas). É uma actividade para a vida, uma “especialização”, que tradicionalmente costumava passar de mães para filhas. O filme de Cláudia Varejão dá este aspecto transgeracional, ao acompanhar mergulhadoras de idades diferentes, e funciona por sua vez como um mergulho nos aspectos práticos e filosóficos desta tradição, mostrando ao mesmo tempo as formas dum Japão ancestral a coexistirem com a extrema modernização (tecnológica, entre outras) daquela sociedade. Sem nada dos procedimentos convencionais e explicativos, o segredo de Ama-San é mesmo essa sensação de enorme proximidade que provoca no espectador, e a sua habilidade de restituir a profunda sensualidade ritualística daquela actividade, o “formalismo” que é essencial a tantos aspectos das tradições japonesas – é por isso, de resto, que as ama resistem num mundo em que as pressões comerciais exigem métodos mais eficazes de resgatar o que se encontra no mar: o que importa é a forma, é o processo, o gesto, muito mais do que o seu resultado prático ou contabilístico.
Paramos a seguir ainda longe de Portugal, em Belo Horizonte. O filme é A Cidade Onde é Envelheço (São Jorge, dia 23, 15h30; Culturgest, dia 24, 18h45), de Marília Rocha, e o primeiro aspecto que vale a pena referir é tratar-se de um filme instalado naquela “dobra” entre a ficção e o documentário, talvez até mais para o lado daquela do que deste – pelo que a sua inclusão num festival que chama o “doc” para o título tem o seu quê de refrescante, no que indica quanto à vontade de passar uma borracha sobre as fronteiras de género. Em todo o caso o filme de Marília Rocha, sobre duas amigas portuguesas radicadas em Belo Horizonte, uma que não quer voltar para Portugal e outra que quer, não faz figura de objecto esdrúxulo: a respiração espontânea da sua encenação, a maneira como lança as suas personagens na cidade, e sobretudo a forma como a cidade vive dentro do filme fazem de A Cidade onde Envelheço uma obra inapelavelmente fundada num real preciso e justificada por ele.
Territórios bem diferentes cobre, como seria de esperar, a entrada de Edgar Pêra nesta edição, O Espectador Espantado (São Jorge, dia 24, às 22h). Na sequência de preocupações que sempre foram caras ao realizador mas que talvez se tenham intensificado nos últimos tempos (ver, por exemplo, o seu episódio para o filme de conjunto em 3D encomendado por Guimarâes 2012, Cinesapiens), o filme interroga o que é feito da experiência cinematográfica, da experiência de se ser espectador de cinema, num mundo em que as formas clássicas dessas experiências se alteraram e alteram radical e velocissimamente. Estruturado em torno de uma série de depoimentos filmados em salas de cinema, depois tratados com toda a espécie de sobreposições visuais e sonoras, o filme faz perguntas, dá respostas, deixa reflexões em suspenso, sem nunca abandonar um tom mordaz que por vezes o transforma numa “crítica do espectador contemporâneo”. Como quando Olaf Möller (um dos críticos convocados, entre outros como Augusto M. Seabra ou Laura Mulvey) preconiza o inferno como o lugar dos espectadores que mandam mensagens de telemóvel durante as projecções, e dos que as mandam logo a seguir, como se fosse imperioso ter um pensamento sobre um filme no minuto seguinte ao fim da sua projecção – “precisamos de desaceleração, não de aceleração”.
Uma menção ainda para Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur (São Jorge, dia 23, 18h45; Culturgest, dia 24, 15h30), um filme de Cláudia Rita Oliveira construído em torno da figura do pintor e poeta, último sobrevivente de uma geração praticamente desaparecida, a dos surrealistas portugueses e seus próximos. Se a estrutura da obra é razoavelmente convencional neste tipo de filmes, a presença de Cruzeiro Seixas nele confere-lhe toda a densidade necessária, na oscilações entre o tempo presente e os mergulhos memorialistas no passado (a relação com Mário Cesariny, sobretudo), acompanhadas de abundante ilustração documental. É uma peça de história oral, na primeira pessoa, o que chega para atestar a validade do projecto de Cláudia Rita Oliveira – quem dera que tantas outras grandes figuras da cultura portuguesa tivessem tido “filmes-arquivo” assim, que as registassem e as ouvissem.
Entre as curtas encontramos um bonito “poema visual” de Joana Linda, Layla & Lancelot (São Jorge, dia 23, 22h; Gulbenkian, dia 26, 19h), que esconde, através de um tratamento da imagem a apontar para formatos tão fora de uso como o super 8 ou o 16mm, o dispositivo supremamente moderno com que as suas imagens foram registadas (um iPhone). Possivelmente influenciado pela avant-garde mais contemplativa, as suas imagens (a natureza “natural” e a natureza “urbana”) oscilam entre a atenção à sua própria plasticidade (as cores, por exemplo) e o ritmo encantatório alcançado pela sua sequência. E referimos ainda mais uma curta: um filme sobre skaters, cheio de movimento, a procurar o “bailado” que existe na actividade de andar às voltas e aos saltos em cima de um patim: Downhill, de Miguel Faro (São Jorge, dia 24, 18h30; Culturgest, dia 26, 16h15).