A batalha de Alepo
A Síria demonstra a paralisia ocidental perante a ressurgência das potências revisionistas.
A batalha de Alepo, considerada por todas as partes como decisiva para o futuro da guerra da Síria, entrou numa nova fase de escalada, com a intensificação dos bombardeamentos russos e a ofensiva terrestre dos Guardas da Revolução iranianos e das tropas sírias leais a Bashar al-Assad.
A intensificação dos combates, ao longo deste ano, tem sido entrecortada por sucessivos acordos para a cessação das hostilidades negociados pelos Estados Unidos e pela Rússia, que marcam curtas pausas nos confrontos. O último acordo de cessar-fogo, que previa ofensivas conjuntas dos militares norte-americanos e russos contra o "Exército Islâmico" e outras formações extremistas na Síria, assim como o acesso das organizações humanitárias a Alepo, durou quatro dias: em 16 de Setembro, a força aérea russa recomeçou os bombardeamentos sobre Alepo e, três dias depois, destruiu o primeiro comboio humanitário do Crescente Vermelho que procurava chegar à parte oriental da cidade-mártir, onde 300 mil pessoas ainda sobrevivem no território controlado pelas forças de oposição ao regime alauita.
Alepo é uma cidade histórica, com um significado político e estratégico crucial. Para as forças de oposição, a vitória em Alepo pode abrir uma linha de comunicação com a Turquia, reforçar a sua presença na província de Idlib e aumentar a pressão sobre a faixa costeira, nomeadamente em Lakatia e em Tartus, onde estão, respectivamente, a nova base aérea e a única base naval da Rússia no Mediterrâneo, penhores da aliança entre Moscovo e Damasco. Dentro das forças de oposição, há uma competição entre os fundamentalistas islâmicos da Jabhat Fatah al-Islam (o nome que a Jabhat al-Nusra adoptou depois de declarar a sua separação da Al-Qaeda) e as milícias sunitas mais moderadas, que disputam entre si o comando do "Exército da Conquista", apoiado pela Arábia Saudita, pela Turquia e pelo Qatar.
Para as forças do regime, a conquista de Alepo é crítica para garantir a sobrevivência de Bashar al-Assad, cuja posição foi prejudicada pelo fracasso da última tentativa de tomar a cidade em Junho passado. As forças iranianas sofreram baixas na ofensiva do Verão, que justificaram a abertura da sua base aérea de Hamedan às forças russas para intensificar os bombardeamentos sobre Alepo e evitar a débâcle da coligação que sustenta o regime. Essa atitude inédita do Irão confirma a convergência estratégica entre os dois aliados externos de Bashar al-Assad, bem como o empenho da Rússia na frente síria.
A Rússia passou a intervir directa e massiçamente na guerra civil em Setembro de 2015. Desde logo, o recuo dos Estados Unidos e a concentração dos seus esforços na luta contra o “Estado Islâmico”, necessária para salvar o regime xiita no Iraque, abria uma oportunidade para a demonstrar a capacidade russa de projecção de poder: no momento da anexação da Crimeia, o Presidente Obama classificou a Rússia como uma “potência regional” e o Presidente Putin não resistiu a corrigir essa afirmação com uma presença militar robusta na Síria. Por outro lado, a intervenção serve para forçar o reconhecimento ocidental de que a Rússia é o parceiro indispensável dos aliados ocidentais para neutralizar o “Estado Islâmico”. Por último, o regime de Damasco continua a ser o único aliado de Moscovo no Médio Oriente, que garante o seu acesso a uma região crítica para a segurança europeia, e a sua intervenção decisiva no conflito não só consolidou o rapprochement entre a Rússia e o Irão, como abriu caminho para a reconciliação com a Turquia.
A intervenção da Rússia na Síria fortaleceu a sua posição regional, confirmou a sua reputação como grande potência e consolidou o nacionalismo imperial que sustenta o regime de Putin. Mas tem riscos óbvios: o ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, afirmou, não sem ironia, que “a Rússia tem tanta influência na Síria como os Estados Unidos em Israel”. Mas a intensidade da batalha de Alepo admite outra interpretação: as forças russas e iranianas estão a fazer tudo para impedir a queda do regime de al-Assad.
É mais difícil compreender o empenho dos Estados Unidos, nomeadamente do secretário de Estado, John Kerry, em estar ao lado da Rússia na Síria. Todos reconhecem o dilema norte-americano: Washington, tal como Londres, Paris ou Madrid, não pode escolher entre estar com o regime alauita contra os seus inimigos sunitas do “Estado Islâmico” ou fazer o jogo do “Estado Islâmico” contra a tirania de Bashar al-Assad. Mas os últimos meses demonstraram que estar ao lado de Moscovo e assegurar a sobrevivência do regime alauita em Damasco são uma e a mesma coisa.
O ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Marc Ayrault, disse esperar que Alepo não seja a Guernica do século XXI. A comparação é tão pertinente como dramática: tal como a guerra civil de Espanha revelou a impotência da Inglaterra e da França para garantir a estabilidade internacional perante a emergência da Alemanha nazi e da Itália fascista, a guerra civil da Síria está a demonstrar a paralisia ocidental perante a ressurgência das potências revisionistas, incluindo a Rússia e o Irão. Todos sabem qual é a continuação da história.