Marcelo Rebelo de Sousa quer pacto para a Justiça
Sector deve ser prioridade nacional, diz Presidente da República.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, defendeu esta quinta-feira, durante a cerimónia de abertura do ano judicial, que decorreu no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa, a criação de um pacto para a justiça que permita transformar este sector numa prioridade nacional.
Um pacto que, na sua opinião, deve começar numa base de consenso entre os agentes da justiça – magistrados, advogados, funcionários, universitários – e só depois evoluir para a aprovação dos partidos políticos. Serão os parceiros não partidários do mundo da justiça que devem "criar plataformas de entendimento que possam abrir caminho aos partidos políticos" para este acordo, que poderá ser "delineado por fases ou por áreas".
“Não se trata de substituir o papel dos órgãos de soberania e os partidos", mas de desenvolver, junto da sociedade civil, "uma percepção da justiça como prioridade”, declarou Marcelo.“Importa assegurar à justiça a prioridade duradoura que lhe tem faltado”, acrescentou. Os agentes da justiça podem contar com ele para esta “mudança de mentalidade da sociedade portuguesa”.
A ministra da Justiça, Francisca van Dunem, reagiu com cautela: “O desafio do Presidente da República foi lançado, em primeira linha, às estruturas de magistrados e oficiais de justiça. O ministério está atento a quaisquer iniciativas nesse âmbito e, como sempre, disponível para construir os consensos de que a justiça tanto necessita”.
Dirigentes da Associação Sindical de Juízes e do Sindicato dos Funcionários Judiciais mostraram-se agradados com o desafio. A vice-presidente da associação de magistrados explicou mesmo que foi o próprio Marcelo Rebelo de Sousa quem incitou os juízes a promoverem um debate sobre a justiça portuguesa, que está já marcado para o próximo dia 7 de Setembro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. "Chamámos os grupos parlamentares, economistas, jornalistas. O encontro terá o alto patrocínio do Presidente", explicou uma dirigente da associação de magistrados, Manuela Paupério.
"Estamos disponíveis para consensos", diz, por seu turno, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas. "Nalgumas áreas talvez se consiga encontrar consensos entre todos. Noutras será mais difícil", admite. Se será possível transformar a justiça numa prioridade nacional, "desde logo se verá no próximo Orçamento de Estado".
O presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, Fernando Jorge, também se diz disponível para um pacto na Justiça. "Temo é que os partidos políticos não o estejam", observou. A ideia agrada igualmente à bastonária dos advogados, Elina Fraga. Será, porém, exequível?
Conceição Gomes, directora executiva do Observatório Permanente da Justiça, que funciona no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, recorda que já houve um pacto, assinado em 2006 entre os partidos do arco da governação, PSD e PS. Só que... correu mal. A investigadora lembra como socialistas e sociais-democratas chegaram a assinar um acordo para redesenhar o mapa judiciário e rever o Código de Processo Penal. "Mas o PSD já não apoiou o PS quando a proposta chegou à Assembleia da República. Na verdade, as lutas políticas fragilizaram esse pacto, que deixou de ter sustentação", lamenta. Por isso, desta vez, esse pacto "tem de ser consequente", defende Conceição Gomes.
De resto, no seu discurso Marcelo Rebelo de Sousa referiu esse pacto – embora sem alusões ao seu fracasso. E falou ainda da percepção que os portugueses têm da Justiça: "Lenta, cara e classista – os meios de defesa não são iguais [para quem tem posses e para quem não as tem]."
A morosidade foi, aliás, também mencionada pelo presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues: "Todos são unânimes em identificar os custos de contexto com a burocracia, os custos associados à morosidade como factores que dificultam a nossa capacidade exportadora e a nossa capacidade de atrair investimento, em especial investimento directo estrangeiro." Ferro Rodrigues não tem dúvidas: a qualidade do sistema de Justiça "é um factor absolutamente crítico para a competitividade da economia". O presidente da Assembleia referiu-se ainda ao sentimento generalizado de que "não somos todos iguais perante a lei" e de que o cumprimento de prazos, na justiça, "é puramente instrumental".
"Numa república democrática não há cidadãos de primeira e de segunda, não há quem esteja acima da lei nem quem seja colocado abaixo da lei. Este sentimento de desigualdade é o adubo dos populismos que vemos crescer à nossa volta. Mina a confiança das democracias e diminui as oportunidades de crescimento das economias", constatou Ferro Rodrigues.
A abrir a cerimónia, a bastonária dos advogados, Elina Fraga, foi outra protagonista do sector a reivindicar mais celeridade: "Como pode ter sucesso qualquer campanha contra o assédio moral no trabalho, se este hoje prolifera de forma impune, quando é do conhecimento geral que, quando não são vencidos pelo cansaço, os trabalhadores são vencidos pela morosidade processual?". A bastonária insistiu ainda na redução das custas judiciais, uma pretensão que a ministra da Justiça não tem mostrado, porém, abertura para satisfazer.
No papel de anfitrião da cerimónia, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, preferiu reflectir sobre aquilo a que chamou o populismo penal - o uso e abuso das penas de cadeia, ou mesmo o aumento das molduras penais dos crimes, como remédio para resolver fenómenos sociais. "Os tribunais devem ter a prudência, a sabedoria e a coragem nos seus julgamentos quando enfrentem a multidão", aconselhou. "Não podemos esquecer que a condenação de alguém inocente constitui o absoluto da ofensa à dignidade da pessoa humana", observou, manifestando perplexidade com o facto de Portugal registar, apesar das suas moderadas taxas de criminalidade, "uma das mais elevadas taxas de encarceramento por cem mil habitantes, e a maior duração média da permanência na prisão em relação aos países da União Europeia".