Num só dia em Agosto ardeu mais do que nos últimos dois anos juntos

8 de Agosto vai ficar para a História como o dia em que mais hectares arderam em Portugal. Mais de 75 mil, uma área superior ao total ardido em 2014 e 2015. Especialistas dizem que dispositivo de combate não era nem será nunca suficiente e é preciso apostar na prevenção.

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A área ardida protegida queimada pelos incêndios aumentou 16% comparativamente a 2015 Nelson Garrido

O início do mês de Agosto ficou gravado para a História com imagens de um país em chamas e sem resposta para as centenas de incêndios que diariamente mobilizaram milhares de operacionais. Depois da tragédia, ficam os números que confirmam o cenário de cinzas que pinta o país e que é o pior da última década.

Segundo os dados fornecidos ao PÚBLICO pelo Sistema Europeu de Informação de Incêndios Florestais do Centro de Investigação Comum da Comissão Europeia (EFFIS-JRC/CE), o dia 8 de Agosto foi o pior em todo o território português. Em apenas 24 horas, Portugal viu desaparecer mais de 75 mil hectares levados pelas chamas dos incêndios, de Norte a Sul do país.

Os 75.229 hectares queimados num só dia ultrapassaram a soma da área ardida em 2014 e 2015, quando arderam, no ano inteiro, 8755 hectares e 49.416 hectares respectivamente. Os dois anos juntos resultam num total de 58.171 hectares de área ardida, um número ainda assim inferior à área ardida no dia 8 de Agosto deste ano. É preciso recuar seis anos para que a área ardida durante um ano inteiro seja superior aos mais de 75 mil hectares ardidos naquele dia. Só em 2010 é que a área ardida ultrapassou a barreira dos 75 mil hectares, quando no final do ano se contaram 101.893 hectares de área ardida.

Área igual a 75 mil estádios de futebol

Aquela segunda-feira foi, de longe, o dia com mais área ardida, mas os números da segunda semana de Agosto são impressionantes e começam no domingo, dia 7. Neste dia arderam 10.934 hectares. Por comparação imagine-se que 10 mil hectares representam a mesma área de 10 mil estádios de futebol. Ora, no dia seguinte o número seria sete vezes superior: 75 mil estádios de futebol. Os números voltam a descer no dia 9, mas ainda assim ardem 14.250 hectares. Só no dia 10 é que Portugal volta a descer a barreira dos 10 mil hectares diários de área ardida, com o desaparecimento de 6873 mil hectares de floresta e mato nesse dia.

Até ao final de Julho, o mês mais quente de que há registo em todo o mundo, Portugal encontrava-se bastante abaixo da média dos anos anteriores, que em período homólogo de 2015 já contava cerca de 23 mil hectares ardidos não havendo sinais de que o país iria ultrapassar a média dos últimos anos. O cenário inverteu-se com a chegada de Agosto em que Portugal passou a representar mais de metade da área ardida em toda a União Europeia

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O Norte foi a zona do país mais afectada Rui Farinha

Do início do ano até à primeira quinzena deste mês arderam em Portugal 118.616 hectares de floresta e áreas naturais, o pior registo nos últimos dez anos. Destes, 113.543 mil hectares arderam logo nos primeiros 15 dias de Agosto. Ou seja, só em duas semanas a área ardida representou mais de 95% do total registado durante sete meses e meio. Por comparação, olhemos para os números de 2015, ano em que até 31 de Agosto arderam cerca de 54 mil hectares. Destes, a maior fatia concentrou-se igualmente no mês de Agosto, tradicionalmente um dos mais afectados nos incêndios.

Oito concelhos mais afectados

Os números disponibilizados pelo observatório europeu permitem ainda identificar as regiões mais afectadas do país. Mais de oito concelhos tiveram incêndios com mais de 2,5 mil hectares de área ardida. Arouca lidera, sem surpresas, a lista, com um incêndio que deflagrou numa área superior a 26 mil hectares. Seguem-se os incêndios de Ponte de Lima (9172 ha), Águeda (7926 ha), Arcos de Valdevez (5587 ha), Vale de Cambra (3734 ha), Anadia (3717 ha), Funchal (3264) e novamente Ponte de Lima (2613 ha) na lista de fogos mais significativos.

A estes dados soma-se ainda a área ardida no Parque Nacional de Peneda Gerês, que este ano ultrapassou os 8,5 mil hectares, e que durante três dias em que esteve a arder não apareceu - sem explicação oficial - na lista de incêndios registados pela Autoridade Nacional de Protecção Civil. 

O resultado é o aumento de 16% da área ardida em áreas protegidas este ano, dos quais 8500 hectares arderam no único parque nacional do país. Os números foram dados pelo ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, que anunciou esta sexta-feira a implementação de um projecto-piloto justamente naquele parque. O objectivo é apostar na prevenção de fogos florestais através de medidas relacionadas com o cadastro, gestão do espaço e reforço dos meios. O financiamento do programa "vai ser feito através do Fundo Ambiental", que foi aprovado no conselho de ministros dedicado ao ambiente, no início de Junho.

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Em apenas duas semanas, 2016 tornou-se o pior ano da última década Miguel Manso

Em análise aos dados mais recentes, que ainda são provisórios, a Associação Portuguesa de Técnicos de Segurança e Protecção Civil (Asprocivil) diz que os números e as consequências “não são da responsabilidade deste Governo”, mas sim “de anos e anos de medidas estratégicas mal tomadas, e decisões políticas, sobre o Ordenamento Florestal erradas, omissas e insuficientes”. Mais do que a escassez de meios de combate, a associação aponta a “falta de acções e de medidas de prevenção”. “Só se fala de incêndios nos meses críticos e exclusivamente sobre a resposta operacional”, sublinha a associação presidida por Ricardo Ribeiro. Uma tese que o também professor na área da protecção civil e comandante dos bombeiros de Paço de Arcos tem vindo a sublinhar.

“Não há dispositivo que aguente dias como este”

Para Ricardo Ribeiro, o dia 8 de Agosto mostra que “não há dispositivo que aguente dias como este”. “A extensão de frentes de incêndio é de tal forma alargada que não há qualquer possibilidade de resposta”, continua. “E isso acontece independentemente da eficácia, organização e competência do dispositivo operacional. É a prova de que temos que cada vez mais apostar nas medidas preventivas e olhar para a resposta de combate como uma medida complementar”, sublinha o presidente da Asprocivil.

Além disso, deixa o alerta: o que aconteceu no dia 8 pode acontecer novamente a qualquer momento. E a probabilidade de repetição do episódio que consumiu o país só irá crescer. Ricardo Ribeiro recorda o aviso dado pelos especialistas de climatologia sobre as alterações climáticas e a conjugação de condições como mais de 30 km/hora de vento, 30% (ou menos) de humidade e os 30 graus de temperatura como condicionantes favoráveis à propagação de incêndios. “A tendência mostra que cada vez mais iremos ter conjugados estes factores mais vezes”, analisa. “Todos os meses, desde que exista sol e não chova vão passar a ser meses em que há o risco de incêndio.”

As condições climatéricas são também um dos pontos destacados por Domingos Patacho, coordenador do grupo de trabalho de florestas da Quercus. “Este ano foi um ano atípico. Tivemos chuva até quase ao final da primavera, logo houve mais combustível para os incêndios, uma vez que o mato e ervas cresceram muito mais do que o normal. Quando chegamos a Julho e a Agosto esse mato está seco e há uma propagação muito fácil”, explica.

O dirigente da associação ambientalista analisou ainda as áreas mais extensas afectadas no distrito de Aveiro, em Arouca e Águeda, no incêndio de Préstimo. Esses fogos atntigiram áreas "onde as monoculturas de eucalipto apresentam milhares de hectares”, destaca. Um cenário “que associado ao vento forte e dinâmica do incêndio com projecção de materiais causou uma rápida progressão com situações de pânico junto das populações que não tiveram tempo de ser evacuadas”, observa.

Quercus denuncia falta de ordenamento

Para a Quercus, “esta situação reflecte a falta de ordenamento do território, com vastos espaços florestais a envolver as aldeias sem que existam faixas de contenção com espécies mais resistentes ao fogo como os carvalhos e os freixos nos vales ou mesmo terrenos cultivados que promovam a descontinuidade das monoculturas de eucalipto”. De acordo com os dados fornecidos ao PÚBLICO pela GNR, só este ano foram fiscalizados 3.088.483 propriedades de terreno que não estavam limpos, tendo sido registadas 872 infracções. As mais comuns foram a “falta de gestão de combustível numa faixa de 50 metros à volta das edificações, não estando garantida a descontinuidade horizontal dos combustíveis”. Este ano, a GNR já cobrou 28.381 mil euros em coimas.

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A situação pode repetir-se, e de forma agravada, alerta Quercus FRANCISCO LEONG/AFP

A Quercus, que lamenta a “descoordenação no terreno”, repete o aviso: “se não se inverterem as políticas, vai haver mais incêndios extremos como os que aconteceram durante o dia 8 de Agosto”. No balanço da destruição dos fogos, além de bens materiais, conta-se também a perda "dezenas de espécies protegidas, como no caso do Gerês, que demoram a repor", diz Domingos Patacho. "Perde-se em biodiversidade" e as "emissões de partículas e compostos degradam a qualidade do ar e até da água dos rios e albufeiras" e "colocam em causa a captação de água para consumo público”, conclui o ambientalista.

O pior já passou? Não se sabe. Para já, esta sexta-feira Portugal passou a poder contar com a ajuda da NATO. Caberá agora a Portugal solicitar o apoio que pretende. A ajuda poderá consistir no envio de meios aéreos ou de brigadas de bombeiros, como aconteceu em 2003, quando a NATO cedeu a Portugal aviões Canadair, helicópteros pesados e tripulação para combate de incêndios. Com Luciano Alvarez

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