E lá em baixo uma rua com a minha morada

Adrift é um excelente retrato do Espaço, do quão desolador pode ser. Infelizmente, é também uma obra sem coração.

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Há muito que o Espaço fascina o entretenimento, transportando sem fazer sair do lugar. É o desconhecido, já se sabe. A tal vontade de vivermos fora da pele, brincando fascinados ao faz-de-conta que para a maioria nunca passará disso. Há obras de mestres, saltando imediatamente à mente Odisseia no Espaço. E restringindo o filtro aos videojogos, títulos como Dead Space ou Mass Effect provaram que é possível criar algo com qualidade em vários géneros.

Sem tiros nem criaturas, Adrift agradece a atenção da vossa imaginação. Levando os jogadores durante aproximadamente cinco horas a vestir a pele da astronauta Alex Oshima: os olhos abrem-se atordoados para a destruição por todo o lado, 462 quilómetros acima da Terra. O mês é Julho, o ano é 2037, a nossa confusão é muita.

Um cabo preso ao tornozelo esquerdo separa-nos de divergirmos serenamente para o infinito espacial. A morte circunda-nos e a obra da Three One Zero tenta imediatamente capturar a luta pela vida, engatando vários minutos de tensão com a explícita procura de um qualquer ponto de salvação. E lá o conseguimos agarrar; e lá conseguimos vingar e começar a epopeia no Espaço; e lá conseguimos dar uma réstia de esperança a Alex; e lá começamos a entrosarmo-nos numa aventura que progressivamente vai deixando a desejar.

Este ímpeto inicial da obra é uma bomba de açúcar que cai na água e se vai diluindo quando percebemos que quase todos os trunfos foram jogados precocemente. Aprendemos rapidamente a controlar Alex num ambiente sem gravidade, com o grosso da jogabilidade a obrigar a ligeiras correções na trajectória depois de impulsionarmos a protagonista. São horas de movimentos subtis que estão intrinsecamente condicionados pelo oxigénio que temos à disposição.

Pelo caminho temos que estar sempre atentos ao medidor de oxigénio e às garrafas espalhadas pelo cenário. Alex usa obviamente o oxigénio para conseguir respirar, contudo, usa-o também como propulsor, ou seja, navegar e explorar o cenário nunca é um exercício livre de encargos, pois é uma questão de tempo até o medidor precisar de ser reabastecido e a vossa prioridade passar a ser encontrar os itens flutuantes, em alguns dos casos com urgência.

Depois de terminado Adrift e reflectindo no meu percurso, é inegável que esta mecânica causou alguns momentos de tensão genuína e, infelizmente, alguns que acabaram na morte da protagonista, graças ao excesso de confiança – eu consigo chegar ali, eu consigo; afinal, não consigo. Nunca senti que desperdicei muito progresso feito, mas ainda assim é um relembrar de como a representação espacial de Adrift, ainda que não tenha criaturas alienígenas nem a necessidade de dar novidades a Mulder e Scully, tem a sua dose de perigo.

Contudo, sente-se que gradualmente a obra se instala num patamar de onde se recusa evoluir. Sem grande surpresa, o derradeiro objectivo é fazer com que Alex regresse a casa, algo que é alcançado realizando tarefas que passam pelo que já foi tentado incontáveis vezes noutras obras: recolher peças para activarmos o lançamento do shuttle e sairmos da estação espacial em direcção ao planeta onde há uma rua com a nossa morada. É um daqueles casos em que se torce o nariz à teoria e a prática comprova que os momentos de brilhantismo são escassos depois de instalada a rotina.

Não é preciso atalharmos por campos snob em que apenas a ficção cientifica complexa é boa, todavia é uma oportunidade desperdiçada para fazer algo mais do que um refrão espacial orelhudo. Pelo caminho, Adrift é generoso quando intende e melhora a matéria-prima que têm para trabalhar, leia-se: consoante vão apanhando os componentes em falta, vão também melhorando a capacidade de armazenamento de oxigénio e os mecanismos de propulsão, mesmo a tempo de viajarem pelas secções mais extensas reservadas para a recta final da obra.

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Onde Adrift também patina é no arco narrativo, mais concretamente na forma como o vai revelando ao jogador. Já ficou estabelecido que não há a profundidade de uma excelente space opera, contudo, fragmentar a narrativa em registos áudio espalhados por um cenário cuja exploração está limitada pelo oxigénio, acaba por funcionar como entregar um novelo com uma ponta microscópica ao jogador. Há pistas visuais que nos explicam de forma mais direta o que aconteceu com a tripulação, mas são muito raras e não chegam para unir o grosso da narrativa. É muito provável que cheguem ao final de Adrift com a desconfortável sensação que há pistas perdidas para sempre naquela imensidão.

De longe, o melhor de Adrift é o seu departamento técnico. A vocalização dos registos áudio é coesa, mas é a banda sonora e, sobretudo, o grafismo que ficarão na memória de quem o experimenta. Escolham um qualquer vídeo que retrate a obra e é muito provável que tenham pela frente uma mostra com texturas e efeitos de excelência. A iluminação e as sombras, a variedade de cenários que contraria o primeiro discernimento que no Espaço é tudo igual – o mais difícil é não ficar arrebatado pelo trabalho da Three One Zero neste departamento.

O branco de índole estéril contrasta com o verde, o vermelho interrupto, o fluorescente, as tubagens: é um rendilhado ao serviço da atmosfera, uma conjugação que tenta ao máximo dar um sentido de progressão e de mascarar que não andamos aos círculos. As várias secções em que a destruição inicial é replicada conseguem causar o impacto de uma imagem geral desoladora preenchida de pormenores quando analisada ao microscópico.

Todo este envolvimento tem a beleza do choque entre a tecnologia com o orgânico, alimentando a confusão do jogador que não demorará muito a perder o Norte – algo que, felizmente, pode ser corrigido com o pressionar de um botão que centra a personagem no cenário. O jogo brinca com a orientação de quem joga e parece ter orgulho nisso. Fazer o pino a pensar que temos a cabeça erguida é um pré-requisito.

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Aliás, a disparidade entre o grafismo e praticamente tudo o resto é tal que Adrift quase pode ser encarado como uma demonstração tecnológica. De vestido de gala e sem coração, é como se fosse uma visita a um museu deslumbrante com poucas peças em exposição. A Three One Zero tem uma ferramenta impressionante nas suas fileiras, agora na próxima tentativa só tem que a usar para trabalhar algo com substância.

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