Mergulhos, calma, árvores e muita política: bem-vindos às tendas dos jovens do BE
Debates sobre vários temas, crianças e adultos a brincarem na praia fluvial, uma grande pacatez. Mas são sobretudo pessoas na casa dos 20 anos que participam no acampamento de jovens do Bloco de Esquerda.
Num dia de calor como este, o deputado do Bloco de Esquerda José Soeiro começa por desafiar, em jeito de brincadeira, o grupo que tem à frente: quem preferir estar na praia fluvial do Parque de Campismo de São Gião, em Oliveira do Hospital, tem toda a legitimidade para o fazer. É o direito à preguiça, diz sorridente, à sombra de uma árvore. O tema do debate era precisamente Pensamento crítico: direito ao trabalho ou direito à preguiça?
Desenganem-se os que pensam que no Liberdade, o acampamento de jovens do Bloco, que decorre até 8 de Agosto, só se fuma charros e é uma libertinagem. Nada disso. O que vimos, e ouvimos, foi de uma pacatez surpreendente. Grilos à noite – ainda que, no fim de uma das festas mais tardias, alguns chegassem à zona das tendas a falarem mais alto. De resto, durante o dia, era a folhagem das árvores, crianças a brincarem na água, pessoas mais velhas, embora a grande maioria rondasse a faixa dos 20 anos.
Algumas deitadas ao sol, em toalhas estendidas junto à praia fluvial, outras a nadarem, a água tem peixinhos, diziam. Jovens a ler, a ouvir música, a conversar. Entre 3 e 8, a organização esperava que passassem pelo parque 300 pessoas, contando com convidados. O espaço é tão amplo que parecem menos. Não há filas para nada, joga-se à bola, raquetes. Os jovens juntam-se à mesa nas refeições; no fim, cada um lava os seus pratos.
Apesar disso do sol, há jovens que trocam a praia fluvial para participar nos debates. São sobre os mais variados temas. No que foi coordenado, ou lançado, por José Soeiro, problematizou-se a relação que temos com o trabalho, o modo como é organizado nas sociedades capitalistas, a possibilidade de libertação desse trabalho para fazer outras coisas na vida. Lembrou-se que trabalho não é o mesmo que emprego, que este é uma actividade em que o produto que fazemos “tem algo de nós próprios”. De que mais se falou? Das regras do capitalismo, da degradação das relações do trabalho, dos recibos verdes, do prolongamento do trabalho pelo tempo de vida. Do sentido do trabalho que somos chamados a fazer. Das múltiplas actividades que há para lá do trabalho. Até da polémica ideia de um Rendimento Básico Incondicional se falou. São pistas, tópicos, questões lançadas a quem está a ouvir. É tudo muito informal, as pessoas sentam-se numa roda em cadeiras; debaixo de árvores, vão ouvindo, intervindo.
De óculos de sol e saia comprida às flores, Beatriz Matos, 23 anos, está pela primeira vez no acampamento. Não é militante do BE, sempre temeu que os partidos fossem muito doutrinários. Mas aqui não está a ter a mesma opinião: “Não sinto que façam lavagem cerebral. Há abertura para discussões. Não somos coagidos a pensar de uma maneira”, diz.
A actriz, que fundou a sua própria associação cultural há ano e meio – a Caducado, Associação Cultural – e que, não tendo trabalho fixo, vai saltando de companhia em companhia, acabou por ir este ano ao evento, porque conhecia amigos que lhe falavam de um espaço “aberto e sem julgamentos de ideias”. Não está desapontada e sente muita curiosidade em seguir o workshop de desobediência civil, com Irina Castro. Está cá também “à procura de se instruir”.
Com urinol e sem urinol
É Irina Castro quem lança o tema da desobediência civil e quem tem orientado os workshops, no fim dos quais deverá sair um guia sobre o tema, com respostas que preocupam os participantes, como a questão do cadastro, por exemplo. Discutem o impacto da desobediência civil não violenta, exemplos de livros – como o que levou à prisão os activistas angolanos, entre os quais Luaty Beirão –, ficam a saber que há, pelo menos, 198 técnicas não violentas: discursos espontâneos em reuniões, escrever cartas para políticos, juntar forças com outras organizações, pintar murais, entre muitas outras.
Pelo recinto, há várias faixas espalhadas com temas defendidos pelo Bloco: “Liberdade é fumar à vontade”; “Fechar Almaraz”; “Igualdade na lei e na sociedade”; “Queremos ver-nos livres – pelo fim das violências contra as mulheres”; “Portugal fora da Nato”; cartazes contra touradas. As casas-de-banho estão divididas em “com urinol” e “sem urinol” – mais uma vez, para contornar os “homens” e “mulheres”.
Entre muitos outros debates, houve também um sobre praxe. Alguns defenderam que se devia ir logo às escolas secundárias sensibilizar os alunos; outros rebateram que já tinham feito isso. Falou-se em proibir, mas também em não se ser paternalista em relação às pessoas que participam nas praxes. Criticaram-se os abusos, elogiaram-se exemplos de integração em que não seja preciso humilhar ninguém.
Manuel Fernandes tem 21 anos, é estudante de engenharia eletrotécnica no Porto e militante há dois anos no Bloco. Acabou de dar um mergulho quando nos conta que esta é a quarta vez que vem ao acampamento. Repete o mesmo que muitos outros: “Este é um espaço livre de preconceitos, onde podemos aprender nos debates e com outros camaradas, pessoas diferentes. O Liberdade mais importante para mim foi o primeiro. Entrar numa pequena sociedade em que se vive em colectivo. É um protótipo de sociedade ideal como a que desejamos.”
À hora de almoço, avisa-se no megafone que há fotojornalistas no espaço. Alguns torcem o nariz. Não se percebe porquê. Não se passa ali nada de especial, mas os jovens bloquistas estão cansados de estereótipos criados à volta deles nos órgãos de comunicação social. A organização dos grupos feministas e queer não quis, por exemplo, que os jornalistas pudessem estar presentes. Porquê? Porque são espaços de intimidade, em que as pessoas se sentem protegidas, e não iriam partilhar as histórias e vivências à vontade com jornalistas à volta. Esta foi a justificação dada pela organização.
No fim, Ana Rosa, 21 anos, também da organização e um das bloquistas que participou no espaço feminista, com outras raparigas e rapazes, acabou por contar que analisaram a festa feminista que tinha havido, fizeram um balanço, elogiaram a decoração, com fotografias e excertos de filmes feministas, com frases sobre por que razão precisam do feminismo. Em princípio, no último dia deverão, através do teatro, representar uma situação de opressão. Falaram ainda de vários tipos de feminismo, de como se sentiam com os corpos, “de andarem sem soutien nas festas, de como na sociedade em geral” também não se conseguem “sentir livres nesse sentido” sem que tal seja entendido como “provocação”. Problematizaram ainda questões como padrões de beleza, magrofobia e gordofobia, e concluíram que a última é uma “situação de discriminação mais grave”.