A ideia de que o mundo pode ser melhor cabe numa tenda

De festas feministas aos debates sobre Europa e precariedade, tudo é político naquele parque com praia fluvial do BE. E todos são bem-vindos, menos o racismo, o sexismo, a homofobia, a xenofobia...

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O Liberdade em 2011. O acampamento realiza-se há 13 anos Adriano Miranda

Tinham 15 e 17 anos quando participaram pela primeira vez no Liberdade, o acampamento de jovens do Bloco de Esquerda. A experiência foi tão marcante que não voltaram a ser os mesmos, a ver o mundo da mesma forma. Hoje, com 21 e 23 anos, Ana Rosa e Ricardo Gouveia, já militantes e uns dos organizadores do encontro, continuam a acreditar no mesmo: que naqueles dias estão a construir um mundo “livre de opressões”.

“No acampamento construímos um pouco a realidade que queremos no mundo - uma realidade alternativa, livre de opressões. É um pouco isso que ensaiamos no acampamento. Temos um programa com uma série de actividades, em que o objectivo geral é mesmo construir a liberdade que queremos ver no mundo”, diz Ana Rosa, que estudou Ciência Política e Relações Internacionais e se prepara para um mestrado em Antropologia. Ricardo Gouveia, estudante de Arquitectura, acrescenta: “Sai-se do Liberdade com a certeza de que é possível um mundo diferente.”

Embora o BE não tenha juventude partidária, este acampamento acontece há 13 anos. Desta vez, vai ser de 3 a 8 de Agosto no Parque de Campismo de São Gião, em Oliveira do Hospital, e são esperados 250 participantes. Não é preciso ser militante do BE. Há, no entanto, algumas regras: não se permite sexismo, homofobia, ou racismo, por exemplo. Depois há questões de funcionamento que implicam partilha de tarefas como limpeza ou segurança.

O acampamento tem uma filosofia. E uma ideologia. É um acampamento que se assume anticapitalista. E são cinco dias em que os participantes vivem o mundo que gostariam que existisse lá fora. De tal forma que, “quando se regressa do Liberdade, há quase um choque, de regressar à realidade”, descreve Ana Rosa. “Mas é também esse choque que é importante. Construímos ali uma zona e um espaço seguros, onde nos podemos abrir muito mais. E vamos trazendo muitas coisas que depois vamos incutindo na nossa vida”, acrescenta a militante, de voz serena mas segura, e uns olhos castanhos rasgados.

A política também passa pelo WC

Mas como seria esse mundo ideal? “Seria construído e partilhado colectivamente. Livre de hierarquias – procuramos erradicá-las ao máximo no acampamento – e em que tudo seja partilhado. Acima de tudo, livre de opressões, de constrangimentos, sexismo, machismo, homofobia, transfobia, racismo, xenofobia”, descreve Ana Rosa.

Conseguem mesmo construir esse mundo, ou já tiveram de lidar com situações adversas? Sim, já tiveram. Ricardo Gouveia recorda que, numa das edições, experimentaram tornar as casas-de-banho e os balneários mistos. Não correu bem, voltaram às casas-de-banho separadas, mas ainda não desistiram da ideia.
“Tivemos uma situação em que uma rapariga se sentiu desconfortável com rapazes que usaram esta experiência para olhar para elas. Voltámos às casas-de-banho separadas, mas continuamos a ter no nosso horizonte chegar um dia e poder dizer que vamos tornar isto misto, porque queremos mesmo desafiar os limites do género e os papéis de género e os pudores”, explica Ricardo Gouveia. Ana Rosa subscreve: “Para nós, não faz sentido ter casas-de-banho binárias. A separação homem/mulher é extremamente redutora.”

Apesar de continuarem a defender o mesmo e ainda que a experiência não tenha corrido como queriam, fê-los pensar. “A casa-de-banho separada também é uma forma - e foi-o historicamente - de resistência da mulher, de querer ter o seu espaço livre do olhar e do assédio do homem. Portanto, numa sociedade onde isso não está superado, machista, como ainda vivemos, é um conflito difícil”, admite Ricardo Gouveia.

Um estereótipo que se fuma

Há estereótipos à volta dos jovens que participam nos acampamentos do BE. Que fumam charros. É verdade; mas também é verdade que isso acontece em muitos festivais de música. A legalização da cannabis até é, há muito, uma bandeira do BE. No entanto, os dois organizadores fazem questão de ressalvar que há quem seja a favor da legalização e não fume.

Passemos o estereótipo à frente – que também não os incomoda muito – e vamos à política. Que política não se resume a partidos nem a câmaras municipais nem a parlamentos. Naquele espaço verde, com praia fluvial, música, festas e debates, tudo é política. Até a intimidade e as experiências que se partilham em espaços de conversa, como o feminista ou o LGBTQIA+. Fala-se de sexualidade, de poliamor. “Costumo dizer que tudo é político”, diz Ana Rosa. As próprias festas são pensadas para que sejam também políticas.

Querem, acrescenta Ricardo Gouveia, “pensar a política não como aquilo que acontece dentro de uma câmara municipal, do Parlamento ou de um ministério, mas como a forma como pensamos a nossa vida e nos relacionamos uns com os outros. ‘Político’ é o debate que temos sobre a dívida e ‘política’ será também a forma como pensamos a nossa relação uns com os outros.” E a forma “como nos relacionamos com o mundo”, continua Ana. “Pensar a política como algo que faz parte de nós e da forma como nos vemos no mundo e com os outros e outras, e não como uma coisa de elites, fechadas num edifício”, acrescenta Ricardo Gouveia.

Alguns exemplos dos debates e dos temas que estão no programa deste ano: 'Brexit'– Há futuro na Europa (José Gusmão e Ricardo Gouveia); Desobediência civil (Irina Castro e Ricardo Martins); A Guerra dos Tronos e os Tratados Europeus (Pedro Filipe Soares); Empreendedorismo é solução para a crise? (Adriana Campos); Pensamento Crítico – Direito ao Trabalho ou Direito à Preguiça (José Soeiro); Introdução à Ecologia (Nelson Peralta); Houve mesmo descobrimentos? A história alternativa da expansão portuguesa (Bruno Góis e Carlos Almeida); Donos Disto Tudo (Mariana Mortágua e Jorge Costa); Pensamento Crítico – Povo, classe ou multidão (Bruno Peixe Dias); Sul Preguiçoso ou Euro disfuncional (Hanna-Marilla, Aliança de Esquerda e Samuel Cardoso).

Mas há mais. Debates sobre praxe, drogas, precariedade. A coordenadora do BE, Catarina Martins, vai falar sobre “um partido que é um movimento”. Haverá um “espaço feminista”, uma “festa feminista”, uma “festa LGBTQIA+”. Vão reflectir sobre se têm vivido situações de machismo, como podem ultrapassá-las, e transpor essa reflexão para o dia-a-dia.

Numa festa feminista como esta não há espaço para sexismo nem machismo. Optou-se por ter DJ mulheres ou mulheres transgénero. Músicas com letras machistas, “nem pensar”, avisa Ana Rosa. Uma das DJ só vai passar músicas de bandas de raparigas. O espaço terá uma exposição de arte feminista e vão distribuir pequenos papéis para as pessoas completarem a frase “eu sou feminista porque…”, para depois exporem no recinto.

A festa LGBTQIA+ tem o mesmo espírito, a música também deve ser “desafiadora dos papéis de género”. Ricardo Gouveia levanta apenas um pouco do véu sobre os objectivos e jogos que lá fazem. “Desconstruir, primeiro, o que é um gesto sexual do que não é. É uma festa. As pessoas divertem-se, ninguém é forçado a nada. É a primeira coisa que dizemos antes da festa. Tal como noutros espaços do acampamento, fazemos questão de reforçar: tudo tem de ser consentido. Temos este lema do ‘sim é sim, não é não, talvez é não’.”

Tocar em alguém do mesmo género

Quanto aos jogos, há um em que duas pessoas do mesmo género (binário ou não) trocam uma laranja com o pescoço. “Normalmente cai. É um desastre sempre, mas é divertido, porque colocamos as pessoas a interagir fisicamente muitas vezes com pessoas do mesmo género e isso pode ser algo a que não estão habituadas”, conta Ricardo Gouveia.

Também fazem um “comboio de massagens” – as pessoas têm de fazer massagens nas costas de outra pessoa ou na cintura. São, diz Ricardo Gouveia, mais uma vez, “gestos muitas vezes sexualizados, que se evitam dentro do mesmo género”, mas que ali conseguem, “de forma pacífica” e sem obrigar ninguém a nada, desconstruir algumas ideias.

O organizador remata: “Um dos grandes objectivos do acampamento também é interpelar as pessoas, pô-las a pensar como podem intervir sobre a sua realidade concreta, na escola, na faculdade, no trabalho; como é que se podem organizar com outras pessoas para resistirem às situações adversas da vida. E isso faz-se, da nossa perspectiva, colectivamente.” 

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