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A vergonha de Karl Ove Knausgård

Depois da saga A Minha Luta, o escritor norueguês está já a trabalhar num novo projecto de quatro livros e a sua estadia por estes dias no Brasil, como não podia deixar de ser, vai aparecer na narrativa.

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WALTER CRAVEIRO

Um gigante Karl Ove Knausgård está enfiado no pequeno auditório da gigantesca Livraria da Travessa no Shopping Leblon, onde durante toda a semana ocorrem sessões que prolongam a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) no Rio de Janeiro. O auditório está a abarrotar, os leitores espalham-se pelas escadas e ocupam, em pé e sentados no chão, o andar de baixo da livraria. No ecrã que transmite a conversa pós-FLIP com o jornalista Leonardo Cases, de O Globo, o escritor norueguês, rodeado do seu ambicioso projecto literário  os quatro volumes de A Minha Luta, que já saíram no Brasil (em Portugal, o quarto dos seis volumes está em tradução e deve chegar às livrarias no último trimestre deste ano) , parece mais relaxado do que estava na festa literária a responder às perguntas dos leitores. Até se ri quando querem saber se alguma vez evitou fazer alguma coisa para que não aparecesse nos livros. Claro que não. “Há muitas coisas que fiz na minha vida e que não aparecem nos meus livros.” Está agora a trabalhar num novo projecto, são quatro novos livros, e metade do último é um diário, que vai incluir a sua estadia em Paraty. E entretanto criou com o irmão uma editora, que ainda não lhe deu lucro, mas que lhe dá prazer e onde publica os livros de que gosta. 

Quando começou a escrever este romance/autobiografia sem seis volumes, explicou, era “muito ingénuo”. Na verdade nunca imaginou que a obra ia ter tantos leitores – um em cada dez noruegueses comprou os livros e foi tal a polémica que as empresas chegaram a organizar para os empregados “dias sem Knausgård”. A romancista britânica Zadie Smith disse esperar cada novo volume da saga “como se fosse crack” e o norte-americano Jeffrey Eugenides chegou a declarar que Knausgård “ultrapassou a barreira do som do romance autobiográfico”. Mas o autor diz que escreveu os livros muito rapidamente e não voltou a lê-los desde que foram publicados. Por isso há muitas coisas de que não se lembra, sabe por alto o que está lá.

“Eu achava que nada do que estava a escrever faria estragos e não pensei nas consequências. A não ser no caso do meu irmão, que sempre me apoiou e sempre esteve ali para mim.” Teve medo da sua reacção quando lhe deu a ler o manuscrito, mas tinha de escrever sobre ele e sobre momentos em que teve vergonha dele. Foi duro porque não queria que o irmão soubesse disso. Mas relaxou quando ele lhe enviou um e-mail a dizer que tinha lido e estava furioso, mas aceitava. “Eu tinha escrito que nunca nos olhávamos nos olhos e que nunca tínhamos apertado as mãos. Na primeira vez que estivemos juntos depois disso ele veio apertar-me a mão. Isso emocionou-me muito. Os dois primeiros livros foram escritos sem sequer pensar que iam ser publicados. E depois tiveram aquela repercussão toda na Noruega. Escrevi o terceiro, o quarto e o quinto com cautela. Ao sexto, percebi que para salvar o projecto tinha de voltar atrás e ser o mais honesto possível outra vez”, explicou o autor de A Morte do Pai, Um Homem Apaixonado e A Ilha da Infância (todos editados em Portugal na Relógio d’Água). 

Na conversa que teve na FLIP com o jornalista e tradutor Ángel Gurría-Quintana, Knausgård já tinha assegurado que nesta obra tentou dizer a verdade  seja lá o que isso for – da maneira mais livre possível. No início foi-lhe difícil, porque não escrevia bem e era um jovem imaturo, mas ao fim de dez anos acredita que conseguiu escrever com liberdade, como se tivesse um “dom incrível”.

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Quando estava para publicar o segundo volume, tentou copiar o sucesso do primeiro. Mas aí percebeu que o importante para ele não era ser reconhecido como escritor, mas o próprio processo de escrita: “Esse é que foi o truque mágico. Para mim, escrever é como ler. É o lugar onde podemos ser livres. Talvez seja o único lugar onde o conseguimos experimentar essa sensação.” A força motriz da sua escrita é querer chegar às coisas que desconhecia antes de começar a escrever – no caso, às coisas que desconhecia sobre si próprio. “Ler uma coisa em que ainda não tínhamos pensamos, isso é a literatura. O estranho de se escrever sobre a nossa própria vida é que achamos que sabemos tudo e que não há nada de desconhecido ou que precise de ser explorado. No entanto, 90% é desconhecido. No final do projecto já nada me importava. Não podia ter misericórdia nem dó de mim, porque eu não sou o livro. O livro é o livro”, continua, explicando que se usou como matéria-prima em busca da identidade.

O drama da mulher

Enquanto escrevia, Karl Ove Knausgård estava sozinho na sua sala. A vergonha só apareceu quando os livros foram publicados. “Nunca tinha dito a ninguém que só me tinha masturbado pela primeira vez aos 19 anos. Li essa parte a um amigo e ele ficou dez minutos a rir-se. Achei que aguentava publicá-lo. Mas mesmo aqui, a falar disso, sinto vergonha. Na Escandinávia não há a cultura da confissão como em literaturas de outros países.”

Como quando iniciou o projecto não tinha nada a perder, foi pouco cauteloso. “Quando disse à minha mulher [a escritora Linda Bostrom] que estava a escrever sobre nós, ela só me pediu que não fizesse dela uma personagem aborrecida. Dei-lhe o manuscrito a ler e ela ligou-me passados 20 minutos: ‘Isto é terrível, mas consigo viver com isso’. Uma hora depois voltou a ligar a dizer-me adeus. Ao terceiro telefonema, estava a chorar copiosamente. Voltei para casa. Ela disse-me: ‘Publica o teu livro’. Conversámos durante dois dias. Um casamento baseia-se em mentir e esconder. Há um pacto para não se dizerem determinadas coisas. Se esse pacto for rompido, é quase impossível consertar as coisas. Para a minha mulher foi duro ler que quando vejo uma mulher bonita na rua eu olho, uma coisa inocente. Não foi o facto de contar as discussões, o que a incomodava era ler sobre a minha vida interna em relação a ela, coisas que ela não tinha sabido sobre mim ou o que eu tinha pensado em determinada altura.”

Os últimos livros foram escritos já com toda a polémica em torno deles. Mas isso fazia parte do plano inicial. “Um dos meus livros favoritos é o Dom Quixote, de Cervantes. É brilhante porque no segundo livro vemos o primeiro, é uma coisa meio barroca. Eu quis fazer a mesma coisa. O volume seis de A Minha Luta é sobre os cinco anteriores.” Começa aliás dois dias antes da publicação do primeiro volume e aborda todas as consequências do projecto: “O meu tio quis impedir a publicação e processar-me, porque ficou com imensa raiva. Os media foram outra das consequências, a minha mulher é outra consequência. Teve um esgotamento e foi hospitalizada. Eu tinha de ir visitá-la com os nossos filhos pequenos. E no meio de tudo isso eu estava a escrever outra vez. Porquê? Porque sabia que o livro ia ser bom? Isso é horrível.”

No final, quando estava a escrever o último volume, Karl Ove Knausgård escrevia e chorava ao mesmo tempo. Mandou essa parte para o editor, que lhe disse: “Essas páginas não têm mais nada além de ti, reescreve.” E ele reescreveu, e lá estava a escrever e a chorar de novo. À terceira vez, conseguiu. “É por isso que o último livro acaba com a frase: ‘Estou tão feliz porque já não sou um autor’. Estava finalmente livre da literatura, podia viver e ser feliz.”

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