A luta continua

Segundo volume do ambicioso e complexo projecto romanesco de Karl Ove Knausgård.

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Nunca faltaram romances a “contar a vidinha” (supostamente interessante) do autor, mas o que se passa em A Minha Luta, a saga autobiográfica de Karl Ove Knausgård, é muito mais do que isso

Um Homem Apaixonado é o segundo volume dessa saga autobiográfica, desta vez com a narrativa focada no divórcio, no seu segundo casamento, no nascimento e na educação dos três filhos, sem deixar de fora as peripécias de se mudar da Noruega para a Suécia (aparentemente países semelhantes, mas com modos de vida bastante diferentes).

Se, e de um modo geral, todos os seis volumes deste complexo projecto romanesco são uma tentativa de resposta à pergunta “Quem eras tu quando não te lembravas que existias?” (a questão é colocada assim no quarto volume), em Um Homem Apaixonado o que sobressai parece ser a procura da razão do acto de escrever e a definição de limites para a luta que é travada entre o tempo necessário para a escrita e o da dedicação aos filhos, que muitas vezes parecem ser inconciliáveis. Knausgård sente-se aprisionado na vida familiar — na sua recente função de pai, que o obriga a mudar fraldas e a passear os bebés sem lhe deixar tempo para a escrita — e por vezes pensa em fugir; mas por outro lado sabe que aquela clausura lhe é essencial para poder chegar ao fim sem recear o passado. A vida familiar surge como uma necessidade mas, ao mesmo tempo, como impedimento ao exercício solitário da literatura. Por sentir, como pai, que a vida que vive não é a sua, a escrita passa por essa “luta” de tornar “sua” a vida que vive. “O que nada tinha a ver com a minha falta de vontade de limpar o chão ou de mudar fraldas, mas se passava a um nível mais fundamental: a vida à minha volta não tinha sentido, eu ansiava a todo o momento por me ver longe dela e, com efeito, mantinha-me sempre como que à distância. Portanto, a vida que eu vivia não era a minha própria vida. Tentava torná-la minha, essa era a minha luta.”

Poucos romances serão tão privados e íntimos como a meia dúzia de volumes de A Minha Luta, o que levou já a inúmeras discussões sobre o que pode significar a auto-ficção, sobre a ética em literatura, ou sobre os limites da exposição do autor. Ao longo dos livros, Knausgård usa um jogo de espelhos auto-referencial, começando aos poucos a esboçar uma espécie de “investigação existencial proustiana” e recorrendo, para esse efeito, a uma mistura de Bildungsroman, auto-ficção desesperada, diarística disfarçada de ficção e perverso exercício metaficcional detalhado. A linha entre ficção e autobiografia esbate-se, um pouco ao jeito de W. G. Sebald em Os Anéis de Saturno, e entre outras diferenças ressalta o modo despudorado como o norueguês entra em campos da intimidade que nem a autobiografia comum tinha ousado entrar. Sem receio algum de se mostrar ingénuo, mas ao mesmo tempo deixando transparecer a aura de A Minha Luta ter resultado de um contínuo “acto inconsciente” de escrita (o que é sublinhado nas muitas entrevistas que deu), Knausgård torna a sua literatura quase isenta de ironia, substituindo-a pela sedutora ideia de “sinceridade” (que para muitos pode ser lida apenas como exibicionismo para responder a necessidades voyeuristas dos leitores). Acaba por ser tudo isto que torna aquela escrita ficcional tão viva — note-se que nunca deixa de ser ficcional, isto devido à forma escolhida para a narrativa, que implica uma evidente distância (sobretudo no recurso repetido aos diálogos) entre o “eu” que escreve e o “eu” que viveu as experiências.

Podemos sempre argumentar que nunca faltaram romances a “contar a vidinha” (supostamente interessante) do autor, mas o que se passa nos volumes de A Minha Luta (e sobretudo neste Um Homem Apaixonado) é muito mais do que isso: o “eu narrador” que se confunde com o “eu autoral” não se limita a enunciar e descrever factos, pensa-os e apresenta-os de uma forma tão singular que já não é a suposta vida do autor que interessa (ou a exposição de um método de procura de uma identidade a que se chega reconstruindo a memória), mas a vida do leitor, através de um processo de identificação com o que é narrado. Quando Knausgård conta, por exemplo, que a partir do momento em que passou a empurrar o carrinho de bebé as mulheres deixaram de olhar para ele, o narrador não está apenas a enunciar o facto mas a pensar a masculinidade e a discutir os papéis de género; quando fala de Dostoiévski, não é o autor russo que está em causa, antes a prevalência do humano num mundo do século XIX abandonado por Deus e desde então radicalmente transformado: já não é o homem que deambula no mundo, é o mundo que deambula pelo homem; e quando as deambulações mudam de sentido, o resultado é sempre a falta de sentido... Esse sentido que Karl Ove Knausgård nos ajuda a procurar recuperando um tempo (o seu, biográfico) — e com isso nos reconstrói.

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