“Desejam muito este meu cantinho aqui”
Maria Matilde de Jesus deixou de ter vizinhos. A sua casa ficou sozinha, paredes meias com um hotel de cinco estrelas, ambos com vista para a Torre de Belém. Querem muito convencê-la a sair. Ela resiste. Comunica com os turistas estrangeiros por ervas aromáticas.
As couves que tem plantadas no quintal de casa são tão altas que já nem parecem couves. Não servem para a sopa porque já não lhe consegue chegar às folhas, “nem com um pau”. Tornaram-se mais decorativas do que comestíveis. Maria Matilde de Jesus gosta de “as deixar crescer à vontade delas: vêm aqui, fazem a curva e vão por aí cima”, descreve. Criou um complicado sistema de estacas com pedaços de esponja preta que lhe amparam os troncos arqueados em direcção ao céu, como se fossem o pé de feijão da história de crianças.
As couves-árvore cresceram tanto que estão quase ao nível da piscina do hotel de cinco estrelas que fica paredes meias com a sua casa. Se algum dos hóspedes do Palácio do Governador estiver na “esplanada privilegiada sobre a piscina exterior” de que fala a brochura do hotel, e se abeirar da parede do fundo “dos terraços virados a Sul”, terá oportunidade de as ver.
Os preços dos quartos do hotel de cinco estrelas que Maria Matilde tem como vizinho variam consoante o dia, como as cotações da bolsa. Hoje uma “mansarda” de cerca de 20 metros quadrados com vista para a Torre de Belém custa 225 euros, informa, cordata, a recepcionista, mas o preço pode ir até aos 685 euros.
Maria Matilde de Jesus tem a mesma vista para a Torre de Belém mas paga cerca de 50 euros à Câmara Municipal de Lisboa pelos seus cerca de 50 metros quadrados de rés-do-chão desta casa que tem mais um andar.
Perdeu a conta ao número de relações públicas (é assim que eles dizem que se chamam), engenheiros, assistentes sociais que lhe vieram bater à porta ao longo dos anos. A última vez foi há uns dois meses. Quando é alguém mais bem-posto, desconfia.
Perguntam a Maria Matilde se não quererá, por acaso, sair daquela sua casa e ir para outra que lhe arranjariam em substituição. “Desejam muito este meu cantinho aqui.” Têm-lhe proposto, em alternativa, uma casa num “bairro”.
Ela sabe bem o que querem dizer com uma casa “num bairro”. Sabe que querem é mandá-la para um daqueles sítios “das barafundas”, em que “parece tudo uma salada russa” e os deixam lá: ‘Agora governai-vos, o bom e o ruim’”.
Pensa sempre na sua antiga vizinha Palmira, que se arrependeu de ter aceitado o dinheiro para sair. Ao fim-de-semana, vem de propósito da Amadora, onde mora agora numa subcave, para matar saudades ao sítio onde lhe ficava a casa.
Todos os que viviam à sua volta cederam. Foram viver para outros sítios, em troca de indemnizações, de apartamentos em bairros. Ela é, juntamente com a vizinha Fernanda que vive no primeiro andar da mesma casa, a resistente.
Sem veleiros à vista
A casa de cor-de-rosa-velho surge como Maria Matilde, isolada. Ficou no meio da calçada à portuguesa que lhe construíram à volta, ao lado de palmeiras de plantação recente e ar de terem sido escolha de arquitecto paisagista.
Na larga área de passeio, onde, além da sua casa, está o moderno elevador metalizado que leva ao parque privativo subterrâneo com 130 lugares do hotel, viviam os seus vizinhos, sete famílias. A chamada Praia Seca do Bom Sucesso era um sítio de “pessoas pobres”, é ela, que é viúva de um polícia, era uma vizinha casada com um carteiro, outra com um marinheiro, outra tinha o marido nas obras.
Era um bairro sombrio em que não se via o rio Tejo, como hoje, veleiros no horizonte, porque estava tudo tapado com chapas.
Assim o conheceu quando chegou de Angola, em 1975, de onde não chegou pela ponte aérea, por opção, preferiu os 12 dias de barco para ao menos poder trazer consigo a mala de enxoval. O jindungo (malagueta) que também tem no quintal descende das sementes secas que vieram com ela no Príncipe Perfeito.
A casa era da sogra, também ali viviam a cunhada e seis filhos, a iluminação dentro de casa fazia-se a candeeiros a petróleo, não havia água. Era um bairro “tipo barracas, casas feitas pelas pessoas, com tijolos por fora”.
Em Angola foi mulher-a-dias de professora, de senhora de fazenda, de mulher de capitão; ali continuou nas limpezas nas “casaronas do Restelo”, “tudo doutores” e uma senhora alemã.
Criou os seus dois filhos naquela pequena casa quando aquele “não era um bom sítio para criar filhos”. Havia toxicodependentes à porta, meninos ricos do Restelo” que vinham pedir aos miúdos pobres que lhes comprassem a droga e estes é que acabavam presos, como aconteceu com os seus sobrinhos.
Sempre disse aos seus filhos: “'Vocês nunca se metam com meninos ricos.' A polícia vinha e os meninos ricos cavavam.” “Graças a Deus, nunca me caminharam para isso.”
Depois, no final dos anos 1990, tiraram as chapas e a casa dela e as dos vizinhos ficaram à vista de toda a gente. A zona começou a ficar “apetecível” nessa altura, quando se instalou ali a Universidade Moderna. Foram os primeiros que lhe disseram “a senhora não quer sair daqui?”. “Se eu vou na cantiga do reitor, tinha saído.”
Agora o Largo da Princesa, ali perto, “já não é um ninho de droga”, deixou de ter “rapaziada a injectar-se”. O sítio tornou-se limpo e calmo, nem ervas daninhas há nos intervalos da calçada.
A sua casa passou a ser um bom sítio para criar os seus dois netos, o Pedro, de dez anos, e o Miguel, de quatro, que jogam à bola junto ao elevador que desce ao parque subterrâneo. Maria Matilde tem 72 anos, reformou-se das limpezas há dez anos para tomar conta deles e o filho não ter de gastar dinheiro.
Gosta de ser moradora de “uma das zonas mais bonitas e emblemáticas da cidade”, como diz o panfleto do hotel. Bem escrevem eles, que ali ficar hospedado “é a escolha natural para quem quer estar em Lisboa, perto de tudo, da cultura ao lazer.”
Habituou-se a ir à missa ao Mosteiro dos Jerónimos, a fazer as suas caminhadas matinais, “por causa das varizes”, junto à Fundação Champalimaud-Centre for the Unknown, onde há muitos anos se lembra de ser um sítio onde se ia comprar bom peixe. De atravessar o Centro Cultural de Belém (CCB), “onde eram os viveiros da câmara”, para ir buscar os netos à escola, mantendo um itinerário antigo. Onde agora é o CCB ficava uma rua que levava ao seu bairro. “Esta zona agora tornou-se bonita” e ela, no processo, diz a brincar, agora também é “chique”.
“Embelezar”
A sua casa tem hoje andaimes na fachada e Maria Matilde ri-se com o que “os do hotel” dizem que vieram fazer: “Vieram ‘embelezar’ a casa”, e repete a palavra como se o verbo fosse novidade para si, “embelezar”.
Os proprietários do Hotel Palácio do Governador querem então que a sua casa fique mais bela. Estão a pintá-la mas não lhe resolvem as fissuras, nem lhe rebocam “a rachadela” que ficou do estremecimento quando andavam a fazer as fundações do parque de estacionamento que fica debaixo da casa, protesta. “Devia ser rebocado, agora para ‘embelezar’... É tudo aparência, tapa-olhos.”
“A câmara nunca me deu um prego.” E mostra o soalho flutuante que montou há três anos, os sítios onde pôs vigas de ferro para a casa aguentar, as paredes que isolou com pladur. Por causa da construção do parque de estacionamento, voltou a ficar “fechada”, entre tapumes, entre 2001 até 2015, até o hotel ser inaugurado.
“Apanhei toda a época má, agora que isto é bom querem-me pôr daqui para fora.” “A minha vizinha tem muito medo.”
Maria Matilde não tem medo. “Só saio se me tirarem.” Ou então se lhe derem uma casa ali perto, em Belém, em Algés, uma casa mesmo dela, papel passado, mas que lhe permita manter a sua vida que é toda ali. Já não conhece ninguém à volta, já não tem vizinhos do lado, são todos desconhecidos, vêem-se sobretudo estrangeiros em excursões. Mas isso não a incomoda. Tem as suas rotinas, que agora passaram a incluir ser observada.
Ao fim-de-semana passam muitos turistas à porta da sua solitária casa. Param, tiram fotografias às calças, saias e camisas que tem penduradas no estendal. Fotografam ainda mais quando têm a sorte de a apanhar a ela, pitorescamente local, no momento em que está a estender as roupas no quintal.
A casa de Maria Matilde funciona como um enclave de vida quotidiana nativa que as excursões podem entrever no meio de uma zona tornada circuito turístico. Só durante esta conversa passaram dois autocarros com segundo andar descapotável, o da companhia amarela e o da vermelha.
Há estrangeiros que fazem mais do que fotografar, metem conversa. Tenta fazer-se entender. Não fala línguas mas comunica por ervas aromáticas. Espreitam-lhe para o quintalinho, garrafões de água de cinco litros cortados ao meio para servir de vasos, como se fossem barcos de plantas a boiar no chão de cimento: “Apontam, perguntam ‘o que é’. Dou-lhes as folhas a cheirar. Eles dizem ‘é muito bom’. ‘Digo-lhes o nome’, que é diferente do nome na terra deles.” Tudo acaba em oferendas.
Mais recentemente deu lúcia-lima a uns ingleses, um casal de italianos foi-se embora com “um pé de orégãos, uma galha de manjericão, outro de chá de príncipe”. Mas em geral “levam muito manjericão”.
“Deus abençoe este quintal, tem de tudo”, disse-lhe, no outro dia, uma turista brasileira, a quem deu “um bocadinho de alecrim”. É verdade. Pendurado num prego está um saco de entrançado transparente cheio de caracóis e caracoletas que lhe circulavam pela vegetação. Também gostam muito do seu quintal. É possível vê-los da “esplanada privilegiada sobre a piscina exterior” ou “dos terraços virados a sul”.