Praxe: 100 personalidades pedem às universidades para criarem alternativas
“Em democracia, deve haver sempre lugar à escolha, mas só é possível escolher se houver opção, ou seja, alternativas consistentes”, defende carta aberta. Alguns subscritores explicam o que os move.
Músicos e actores, escritores e cineastas, advogados, jornalistas, juízes, deputados, professores universitários... São 100 os nomes que constam da lista de assinaturas de uma “Carta aberta a todas as instituições de ensino superior”, que o PÚBLICO divulga em primeira mão. O tema é a praxe. Ou melhor: as alternativas à praxe a que, segundo os subscritores, os estudantes devem ter acesso quando entram numa universidade ou politécnico.
“Instamos todas as equipas dirigentes das universidades, politécnicos, faculdades e escolas superiores a criar, com carácter duradouro, actividades de recepção e de integração dos novos estudantes e das novas estudantes, ao longo do ano lectivo, que configurem uma alternativa lúdica e formativa às iniciativas promovidas pelos grupos e organizações de praxe”, lê-se na missiva que tem como título Integração no Ensino Superior: a democracia faz-se de alternativas.
É assinada — entre muitos outros — por aquele que é considerado “o pai do Serviço Nacional de Saúde”, o ex-ministro António Arnaut, a rapper Capicua, a jornalista e presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Rio, a apresentadora de televisão e presidente da Associação Corações com Coroa, Catarina Furtado, os cineastas João Salaviza, Margarida Gil, Raquel Freire, os escritores José Luís Peixoto, Miguel Sousa Tavares, Luísa Costa Gomes, Inês Pedrosa, os militares de Abril Vasco Lourenço e Pezarat Correia, o advogado Celso Cruzeiro, a atleta Melissa Antunes...
“Sendo certo que nenhum estudante é formal ou legalmente obrigado a frequentar as actividades de praxe, seja em que faculdade ou escola superior for, a pressão para aderir é muitas vezes muito forte e em si mesma uma violência, e a ausência de outros mecanismos integradores é um facto”, lê-se ainda. “Em democracia, deve haver sempre lugar à escolha, mas só é possível escolher se houver opção, ou seja, alternativas consistentes.”
A juíza que recusou ser praxada
A juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, Clara Sottomayor, vive no Porto, onde costuma ver, com frequência, “estudantes na rua, de gatas, com penicos na cabeça, a proferir palavras humilhantes para eles próprios”. Diz que o que vê não só “não é pedagógico” como “não é um bom exemplo para a sociedade”. Por isso assinou a carta aberta.
Já no seu tempo de estudante, quando em 1983 entrou na Católica do Porto, deparou-se com algumas práticas que considerou incómodas — nessa altura as manifestações praxísticas saíam menos à rua, aconteciam dentro das instituições. “Havia uma fila para uma espécie de tribunal onde os estudantes novos eram julgados e depois obrigados a fazer coisas humilhantes.”
Hoje, a juíza, que é também professora convidada da Católica, recorda que chegou “a ser obrigada a ir para a fila”, mas pediu ajuda a um amigo mais velho que andava na mesma universidade. “Foi-me buscar, tirou-me dali.” Não é verdade, diz, que seja sempre fácil dizer não. “É discutível a liberdade de consentimento nestes casos.” Como lembra a carta aberta, a pressão é grande, sobretudo para os estudantes que vêm de outras cidades, pela primeira vez estão longe da família e sem amigos por perto.
“Não me sujeitei à praxe e não deixei de fazer amigos por causa disso”, remata a juíza. É um mito que a praxe seja a única forma de integrar os novatos.
A deputada que foi para fora
A praxe como integração? “Só se for a integração da boçalidade e da perversão”, responde São José Lapa, actriz. Com 65 anos, não se lembra de no seu tempo, na Escola Superior de Teatro, haver praxe. Mas deixa uma sugestão: soube que um grupo de alunos se organizou recentemente para com os “caloiros” ajudarem a “reconstruir casas numa velha aldeia”. Sustenta que esta, sim, “é uma actividade integradora”. Mas “há tanta coisa mais que se pode fazer...”
Rubina Berardo, 33 anos, deputada madeirense do PSD, estudou no Reino Unido. “E lá não havia praxe, havia uma semana com várias actividades organizadas pela universidade e pelas associações académicas, que tinham uma vertente lúdica, festa, convívios, mas não só. Havia também uma feira de actividades, por exemplo, onde me inscrevi como voluntária numa linha de apoio psicológico para estudantes.”
Nunca lhe agradou a ideia de ser praxada e confessa até que, quando teve que se decidir entre Portugal e outro país para estudar, o facto de haver praxe em Portugal contribuiu para que escolhesse outro país.
Ainda assim, a deputada não acha que se deva proibir a praxe. Gostava antes que houvesse “uma mudança gradual de mentalidades” e a carta aberta que decidiu subscrever, “uma iniciativa suprapartidária”, sublinha, pode constituir-se como mais um contributo.
“Ir além da questão da violência”
Outros deputados constam da lista de subscritores: Paula Teixeira da Cruz e Cristóvão Norte (PSD), Alexandre Quintanilha, Isabel Moreira e João Torres (PS), Teresa Caeiro e Ana Rita Bessa (CDS-PP), André Silva (PAN), Joana Mortágua e Zuraida Soares (BE, sendo esta última deputada da Assembleia Legislativa dos Açores). Mas a ideia partiu do deputado Luís Monteiro, 23 anos, do BE.
“Achei que fazia sentido reunir pessoas de diferentes quadrantes políticos e sociais, ir além da questão da violência física, que por vezes está associada à praxe, e que é a mais noticiada”, conta o deputado.
No mês em que se iniciam as candidaturas às universidades e politécnicos do país, a ideia da carta aberta “contou logo com o apoio de grande parte dos deputados” que contactou. E, à medida que foi falando com pessoas fora do universo da política, mais se lhe juntaram, com mais contributos. Em cerca de três semanas chegou aos 100 nomes.
Luís Monteiro espera que a carta consiga sensibilizar todas as instituições para que até ao início do próximo ano lectivo consigam “organizar outras formas de recepção e de integração” dos alunos. É que para muitos dos seus colegas, de outras cidades, que conheceu nos seus primeiros dias de estudante da Universidade do Porto, “a praxe foi mesmo a única forma que lhes foi apresentada”.
Ele recusou ser praxado, o que fez com que demorasse mais algum tempo a conhecer os seus colegas. “Quando chegava pelas 8h30 da manhã, eles já estavam em praxe desde as 7h30.” Não foi complicado, estava na sua cidade, tinha amigos, sentia-se acompanhado, lembra. Os novos amigos acabaram por surgir na mesma.
Nem alegria, nem irreverência
O escritor Jacinto Lucas Pires, 41 anos, chegou à universidade no início da década de 90. Um professor dava uma aula, e no fim não era um professor mas um aluno mais velho. Os caloiros eram chamados ao palco, mas quem não queria não ia — em suma, a sua praxe nada teve de traumatizante. Por isso, a razão pela qual assina a carta aberta é esta: “A praxe, tal como existe no que tem de pior, é um sinal de que as marcas de cerveja ganharam à cultura, que era a marca forte” da população estudantil.
Mais: a praxe das “procissões humilhantes no Rossio, dos estudantes de gatas” não tem “nem alegria, nem originalidade, nem irreverência”. O escritor não defende que se acabe com a ideia de praxe, o que queria era que as universidades recebessem as pessoas “fazendo-as sentir em casa, com alegria”. E por isso assinou a carta.
Ana Zanatti, que recentemente lançou um livro, O Sexo Inútil, onde a personagem principal lhe relata uma praxe “muito marcante, a que foi submetida à entrada da universidade”, sublinha outro ponto a que se refere esta carta aberta: a importância de haver canais para os alunos se queixarem se forem alvo de abusos.
No seu tempo (finais de 1960), Zanatti não se lembra de haver praxe na Universidade de Lisboa. O arqueólogo Luís Raposo (entrou em 73/74) também não, “mas havia antipraxistas”, recorda o presidente do Conselho Internacional dos Museus, que não olhava com bons olhos para os costumes da comunidade estudantil de Coimbra. “Quase que parecia mal, em Lisboa, aderir à praxe, andar com aqueles sobretudos, todo o folclore, o próprio conceito de caloiro não existia. Estávamos todos no mesmo barco, todos na mesma agitação.”
“Um grito de alerta”
Só que nos últimos anos, diz o arqueólogo, algo mudou. “Tem havido um retrocesso nos costumes que me inquieta. As indumentárias, a praxe, os rituais, a hierarquia, por todo o lado, muito visível. O que aconteceu à nossa sociedade para que se sinta tanta falta destes rituais?” Para não falar “das humilhações, dos abusos”. E remata: “Assinar esta carta, para mim, é um grito de alerta e ao mesmo tempo de revolta contra as humilhações.”
Rui Unas, actor, humorista, produtor, resume assim o seu apoio à missiva: “Assinei por uma questão de justiça”, as pessoas “devem poder escolher”. Alexandre Quintanilha, deputado do PS, segue a mesma linha. Admite que “haja uma cerimónia para os novos alunos”, o problema é outro: “Em muitos casos a praxe envolve processos de intimidação, de diminuição dos jovens da sua capacidade como adultos, e tem havido casos extremos.” Aliás, lembra, “já houve pessoas que morreram”.
Manuel Loff, historiador, entrou na Universidade do Minho como estudante nos anos 1980, quando o ensino superior se começou a massificar e, explica, a praxe começou a “ser reabilitada” pela mão das organizações juvenis situadas mais à direita. “Recusei participar aos 17, aos 18, aos 19.”
Do Minho passou para o Porto, onde foi presidente da associação de estudantes da sua faculdade. “Éramos uma lista da esquerda plural e não nos assumíamos contra a praxe, porque na lista havia divisões entre nós: eu era clarissimamente contra, mais muitos dos meus colegas não eram, e o que dizíamos era que não tínhamos que colaborar minimamente, nem gastar dinheiro, com aquilo que não era uma actividade consensual entre os estudantes.”
Nos anos 90, “a praxe ganhou uma grande popularidade”, continua. “Uma percentagem muito significativa dos jovens portugueses chegam ao ensino superior, e os seus pais têm um enorme orgulho, como compreendemos. A praxe, o traje académico, a pasta são símbolos dessa entrada.” Mas esta praxe que entra pelo século XXI adentro não é nova. “Vem acompanhada do que sempre teve, historicamente — da humilhação de natureza sexual, de um misto da hierarquia e disciplina militar.”
Hoje, o professor universitário lamenta ver “uma total falta de coragem na abordagem deste tema da parte de alguns reitores e directores e administradores das instituições de ensino superior”. Também espera que a carta aberta seja mais um contributo para o debate.