Bloco de Esquerda: renasceu uma estrela?
Numa conversa em que a sua vida se cruza com a do BE, o deputado Jorge Costa deixa algumas mensagens: o BE não é um CDS do PS, “é uma força autónoma que disputa com o PS a hegemonia na esquerda”.
A escolha do símbolo do Bloco de Esquerda, fundado em 1999, foi logo uma inquietação. A inquietação combinava, de qualquer forma, com a novidade e agitação que o partido trazia nessa altura à cena política. Uma diferença que marcou a identidade do Bloco e que os bloquistas querem manter, mesmo agora que fazem parte da equação do poder. Este é um tema que não fugirá da Convenção deste fim-de-semana em Lisboa, a primeira depois do nascimento da geringonça.
Voltemos à história da estrela. Houve uma discussão sobre o símbolo que deveria ter o partido, nesses inícios do BE, em que trotskistas, ex-maoístas, ex-PCP e muitos esquerdistas sem partido se juntaram para criar algo novo, com mais força política e social. A primeira reacção foi excluir o óbvio: uma estrela, não. Era o símbolo do PSR, do socialismo e o BE era uma novidade. Lá encontram a solução: foi desenhada uma estrela com cabeça. Nasceu uma estrela foi mesmo o nome do documentário realizado pelo agora deputado do BE Jorge Costa e pelo então bloquista Daniel Oliveira. O mote eram os 10 anos do partido.
A estrela que nasceu vivaça nesse ano de 1999 deixou de brilhar uns tempos depois: pelo caminho, houve desentendimentos na corrida à liderança, bloquistas que saíram, chegou a anunciar-se a morte do partido. Mas a estrela acabou por renascer em força em Outubro do ano passado. Nas últimas eleições em Portugal, teve o melhor resultado de sempre, tanto nessas legislativas, como nas presidenciais.
Mas foram as legislativas que permitiram criar uma constelação nova. O Parlamento tinha, tem, uma maioria de esquerda e PS, PCP e BE entenderam-se, assinaram acordos inéditos. O estado da geringonça, o seu futuro e solidez será naturalmente um tema da X Convenção que tem como mote Mais força para vencer.
Mas não há dúvidas. Depois das legislativas, o BE tornou-se mesmo uma estrela, pelo menos mediática – e isso até é alvo de críticas de moções que não as da actual direcção. Catarina Martins teve títulos de vitória na imprensa nacional e internacional, um dos ex-líderes mais carismáticos do BE, Francisco Louçã, chamou-lhe heroína. O BE tornou-se a terceira força política do país.
O agora deputado Jorge Costa hesita quando lhe perguntamos se o BE se tornou mesmo uma estrela. Não lhe apetece dizer que sim, alinhar no sentido de estrelato que a palavra pode ter. Destaca apenas o interessante que é haver um partido anticapitalista que consegue influenciar a vida do país.
A “aversão” da direita
A vida de Jorge Costa confunde-se com a do partido, não só por ter acompanhado o BE desde o início, mas porque há detalhes que parecem combinar na perfeição. Hoje com 40 anos, Jorge Costa, alto e magro, mais sério do que descontraído, começou por ser assessor de imprensa do BE, tinha 24 anos. Agora não só é deputado como participou e participa em reuniões com o Governo. Foi uma estrela em ascensão, como o BE e como outros bloquistas sobre quem já tanto se escreveu: Mariana Mortágua é só um exemplo.
Ninguém sabe quanto durará este estado de graça, nem como se repercutirão, por exemplo, as exigências de Bruxelas na paz até agora alcançada nos acordos do PCP, do PEV e do BE com o PS. Os dois partidos que suportam o Executivo não aceitam a lógica das regras europeias, enquanto o PS sempre defendeu o projecto europeu.
E a Europa é incontornável. “Nesta Convenção, há um elemento importante: esta ideia de que o BE está a construir uma nova hegemonia no país”, diz Jorge Costa, pai de dois filhos, um de 11 meses e outro de dez anos e que também viu a sua vida virada do avesso desde que foi eleito. Eleito numa altura em que o Parlamento estava em ebulição, polarizado e em que a afinação da geringonça está sempre a ser testada.
“O BE está obrigado a responder sobre um leque de questões muitíssimo amplo. O núcleo dirigente do BE está obrigado a responder, em tempo real, a solicitações enormes, a questões complexas”, diz o deputado que entra na Assembleia da República às 9h e sai às 19h. Depois vai para casa, mas em casa há Internet. E com Internet o trabalho continua. Jorge Costa prefere ficar-se por aqui, não é assunto que lhe valha “muita popularidade” lá por casa.
Mas viajemos de novo até ao futuro, pelo menos àquele que está na cabeça do BE: “Estamos a trabalhar para que o nosso programa político, para que o nosso contributo nesta maioria, ganhe um peso maior. É isso que nos distingue do CDS. Nós não somos um CDS do PS”, continua Jorge Costa. Não o são, porque não participam, como no Governo de coligação PSD-CDS, no actual Executivo. A justificação foi sempre a mesma: o programa socialista não ia suficientemente longe para os bloquistas aceitarem cargos governativos. Isso não significou, no entanto, que não fizessem parte da solução de Governo.
“O Bloco quer é disputar uma maioria política à esquerda. E quer tornar-se na força de referência de uma maioria à esquerda”, diz o deputado que estudou Comunicação Social na Universidade Técnica de Lisboa e chegou ao Bloco, vindo do PSR, sempre perto de líderes, como Francisco Louçã. Ainda podem ir mais longe?
“Queremos governar”
“Nós queremos ir para o Governo. Queremos governar, nós somos um partido que disputa o poder. A partir de uma lógica diferente daquela a que as pessoas se habituaram. A nossa disputa pelo poder depende de um protagonismo forte fora das instituições, da mobilização das pessoas”, explica Jorge Costa. Isto significa que “tem de haver expressão social, uma dinâmica da defesa dos direitos que vá para lá dos acordos parlamentares”.
Embora sem fazer futurologia, o deputado não poupa nas imagens quando fala do futuro: “Não está escrito em lado nenhum que, em Portugal, a esquerda será sempre o PS como uma força hegemónica e que toda vida há-de ser assim. Amanhã um acordo à esquerda pode ser desenhado sobre outras bases e sobre uma relação de forças políticas completamente diferente. Pode ir muito mais longe do ponto de vista da recuperação do país.”
A direita, continua Jorge Costa, percebeu que “o seguro de vida que teve ao longo dos anos foi o rotativismo do centrão” e que “o pacto de regime entre PS e PSD” pode ser ameaçado “se se conseguirem resultados com esta experiência” governativa. Mas não só. A direita está também a perceber, diz o deputado, que o BE “não é necessariamente uma força supletiva em relação ao PS, que o BE contribui positivamente para os resultados desta maioria”, que “não desiste e não se reduz a ser uma força complementar em relação ao PS”. Jorge Costa repete, para que fique bem entendido: “O BE é uma força autónoma que disputa com o PS a hegemonia na esquerda. É esse combate que estamos a fazer ao mesmo tempo que contribuímos para a solução de maioria.”
Por isso, o BE, que tem 11.734 militantes, quer não só garantir que tudo o que foi acordado com o PS é cumprido, como “aprofundar com a direcção do Partido Socialista e com o Governo sobre o que há-de ser o Orçamento do Estado (OE) para 2017”, quais “os planos de recuperação do país para os próximos anos”. E para o BE há um caminho claro: “É preciso ir muito mais longe.”
Há, no entanto, pontos sensíveis que toda a gente conhece desde que os acordos foram assinados: a renegociação da dívida, por exemplo. “Estamos perfeitamente convencidos de que, sem renegociação da dívida, as perspectivas para uma resposta económica que permita novos avanços, responder à necessidade de investimento público, da criação de emprego, da recuperação dos rendimentos… Sem ela, esse percurso é muito difícil.” E acrescenta: “Essa questão está colocada, mas nós não vamos antecipá-la em relação ao debate público. Queremos que esta maioria vá produzindo, ao longo da sua existência, resultados em termos de recuperação de rendimentos e de emprego. Portanto, vamos fazer sempre em cada OE e, ao longo de cada sessão legislativa, todas as negociações que nos permitam ir avançando nestes patamares.”
Desobedecer a Bruxelas
Mas vão bater o pé a Bruxelas, sempre que for preciso? “Acreditamos que, quando for preciso fazer frente às exigências de Bruxelas e mostrar vontade de um país sair do pesadelo da austeridade, o PS vai contar com a maioria no Parlamento sempre. Vai contar sempre com o apoio da esquerda e do BE. Mas isso é para cada vez em que seja necessário fazer esse enfrentamento. Não fazemos adivinhação.”
Apesar do caminho futuro que o BE quer percorrer, há um passado, a nível interno, que nem sempre foi fácil. Não é um problema para Jorge Costa: um partido sem tensões é um “partido morto”, diz. “O que houve foi uma divisão do campo político que tinha dirigido historicamente o BE, que se apresentou com duas candidaturas e duas moções à direcção”, recorda, referindo-se à disputa à liderança entre a actual porta-voz do BE, Catarina Martins, e o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares. “Mas isso não foi um dos momentos mais difíceis do BE.” A prova, continua, é que ambos estão juntos na moção que este fim-de-semana vai à Convenção.
O agora deputado destaca, como um dos momentos que mais o marcou desde o nascimento do BE, a chegada do partido ao Parlamento. Mais uma vez, a aterragem não passou despercebida. Foi nas legislativas de 1999, foram eleitos deputados Francisco Louçã e Luís Fazenda. “Quando o BE chegou ao Parlamento houve um problema de falta de consenso na conferência de líderes a respeito do local do hemiciclo onde devia ter assento. Houve várias tentativas de subalternizar a presença do BE que era um grupo parlamentar”, recorda Jorge Costa, que diz ter sido o primeiro assessor a enviar SMS aos jornalistas, sob o espanto dos outros assessores.
Com a confusão instalada, acerca do lugar no plenário, o que fizeram os deputados do BE? Ficaram de pé. “O primeiro gesto que o BE teve de ter ao chegar ao Parlamento foi afirmar a sua existência e identidade. Escolheu o seu local à esquerda no hemiciclo, à esquerda dos outros partidos, significando a radicalidade da sua proposta e a transformação que vinha trazer ao Parlamento, que era precisamente uma deslocação à esquerda da política portuguesa.”
Mas o gesto teve também outro significado. Foi “um sinal de rebeldia e de insubmissão ao código e ao protocolo da instituição parlamentar e da política tradicional em geral”. Louçã e Fazenda ficaram de pé “uma série de sessões e isso foi uma imagem constitutiva do BE, desde o início”. Começaram logo a “desobedecer ao próprio Parlamento num momento em que chegavam”.
Mas isto é, sublinha Jorge Costa, uma análise do ponto de vista simbólico. O “grande facto foi a transformação política que representou a chegada do BE ao Parlamento, que mudou a política portuguesa, mudou o mapa político da esquerda, de uma forma consistente”.
O segundo momento de que Jorge Costa gosta de se lembrar foi a vitória do referendo do aborto em 2007. Quanto ao terceiro momento, hesita. Não foi o acordo à esquerda? Silêncio. Acaba por concordar, mas ressalva: “A importância do acordo não é o acordo, mas as conquistas políticas.”
Dificuldades
Já ocasiões que Jorge Costa destaca pela negativa são, por exemplo, a vitória do não no primeiro referendo do aborto, um ano antes da fundação do BE. Pode não fazer parte cronologicamente da história do partido, mas faz em termos de ideário. Sentiram, no movimento em que estavam inseridos, a derrota de não terem sido capazes de enfrentar os sectores mais conservadores, o “espanto” de estarem “num país mais difícil” nestes temas do que estavam à espera.
Apesar disso, foi essencial: “A experiência dessa derrota foi muito importante para se perceber que era preciso criar uma nova consciência colectiva, uma nova identidade política, capaz de enfrentar esse conservadorismo e esse medo, e mudar a situação. Esse momento foi difícil, mas virtuoso desse ponto de vista.”
Difícil para o BE foi, naturalmente, a chegada da troika ao país, em 2011. Mais uma vez, repete Jorge Costa, o que aconteceu foi o “o medo, o medo social generalizado, e a deslocação para a direita da sociedade”. É nesta altura que o Bloco perde metade dos deputados – de 16 para oito. “Isso demonstra até que ponto o discurso da direita foi hegemónico na sociedade, de que não havia qualquer alternativa, que a austeridade era a única estratégia possível.” Foi “muito duro”, admite. O “balanço da experiência do Governo grego” também foi outra “lição muito dura” para o BE, demonstrando que “não se pode subestimar o poder destrutivo das instituições europeias actuais”.
A chegada de Jorge Costa ao BE, que ainda foi a algumas reuniões iniciais, foi através do PSR, assim como Francisco Louçã. Resumidamente, o partido foi fundado por Louçã, Luís Fazenda (UDP), Miguel Portas (Política XXI) e Fernando Rosas.
“Não nos conhecíamos muito bem, as organizações políticas que constituem o BE não tinham um percurso muito comum, tinham perfis, a sua composição social, o tipo de intervenção política, o seu percurso era muito diferente”, recorda. “Foi em torno de um programa político e não tanto de uma acumulação de experiências partilhadas que o BE se iniciou”, continua Jorge Costa. Havia esse espaço: “A esquerda precisava de um programa que não se estava a expressar na sociedade e estas correntes, com as suas identidades tão diferentes, com os seus perfis de composição social tão diferentes e com a sua experiência activista tão diferente, podiam, em torno de um programa, oferecer uma alternativa.”
Agora que faz parte de uma solução de Governo, que está mais perto do que nunca do poder, o BE tornou-se menos irreverente? “Nós não temos de dar provas de irreverência”, responde prontamente Jorge Costa. Diz mesmo, ele que também foi responsável de informação e propaganda do BE, que olhando, por exemplo, para os cartazes do partido não só a irreverência se mantém, como dá exemplos de outros que, mais do que irreverentes, são agressivos. Para Jorge Costa, o cartaz mais irreverente que fizeram é de 2009: “quem tem lucros não pode despedir”, na imagem, uma pessoa deita outra ao caixote do lixo. “É o mais agressivo e explícito sobre a injustiça económica. E dessa irreverência o BE nunca vai abdicar.”