África Austral despede-se do El Niño sob ameaça de fome histórica
Crises económicas e políticas agravam o cenário marcado por uma das maiores secas de sempre, que afectou de Angola até Moçambique. Apesar do enfraquecimento do fenómeno, é a partir da segunda metade deste ano que o seu impacto sobre as populações será mais sentido.
Nas redes sociais, um velho conhecido saúda os moçambicanos. “Lembram-se de mim? Estou de volta!” É um repolho. Para muitas famílias do país, nos piores anos das décadas de 1980 e 1990, esta verdura era o único alimento disponível e, por isso, a sua garantia de sobrevivência, daí o apelido que carrega até hoje: “se não fosse eu” – se não fosse o repolho, naqueles anos, os moçambicanos não teriam o que colocar no prato. O resgate dessa memória reflecte as perspectivas para os próximos meses em toda a África Austral: a fome volta a espreitar.
No total, 32 milhões de pessoas estão sob ameaça de insegurança alimentar nos países-membros da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), o que representa um em cada dez habitantes da região. Este contingente ainda reflecte os maus resultados das colheitas em 2015, mas as perspectivas para este ano são ainda piores.
O culpado é o fenómeno El Niño, aquecimento anormal das águas do oceano Pacífico cujos efeitos são sentidos no clima. No caso africano, 3ºC a mais registados no outro lado do globo foram suficientes para provocar uma das mais graves secas de sempre entre o final de 2015 e o início deste ano. O Pacífico despediu-se do El Niño no último mês, mas é no segundo semestre deste ano que as suas consequências para os africanos começarão a atingir contornos dramáticos.
Ao contrário das enchentes, a seca é um fenómeno de longo prazo, que se instala de forma lenta e cujos efeitos duram vários meses. Na África Austral, o auge da fome provocada pelo El Niño só deverá ser sentido entre o final deste ano e o início de 2017. “O número de pessoas em situação de insegurança alimentar apenas na África em 2016-2017 deve ser pelo menos duas vezes mais alto do que os níveis actuais”, diz o relatório de Maio do Programa Alimentar Mundial (PAM). É uma tragédia anunciada, que se desenvolve em câmara lenta aos olhos do mundo.
O céu não colaborou, mas o cenário que se verifica em África demonstra que a gravidade dos problemas previstos para os próximos meses não é resultado apenas do que pode ser medido pelos pluviómetros. Das crises económicas à degradação ambiental, passando pela tomada de decisões a nível político, uma conjugação de factores está a agravar a sina dos africanos.
Nada para comer
A população de Cahama, município na província do Cunene, Sul de Angola, esperava estar em plena colheita quando chegasse o mês de Maio. Boa parte dos agricultores, no entanto, não terá praticamente nada guardado para consumir até a próxima colheita. “Em alguns lugares, deu um bocadinho, noutros não deu nada”, lamenta Moisés Varanda, 63 anos, soba local.
Em Angola, a estimativa é a de que 1,25 milhões de pessoas estejam sob risco de insegurança alimentar, o que representa um aumento de 65,8% em comparação com a época anterior, segundo a SADC. Cunene, Huíla, Benguela, Kwanza Sul, Namibe e Cuando-Cubango são as províncias mais afectadas.
Após um grave período de seca, as águas de Março fecharam o Verão nalgumas regiões do Sul da África, mas mesmo nelas a promessa de vida não veio. A explicação está naquilo que podemos chamar “um ciclo de miséria”, do qual Cahama serve de exemplo.
Há três anos que esta localidade angolana regista índices de precipitação abaixo dos normais durante a época chuvosa, que deveria ir de Novembro a Abril. Os maus resultados das últimas colheitas já haviam reduzido o acesso dos seus moradores à comida. Ao notarem que esta seria mais uma temporada sem chuvas – e já a sofrer com a fome –, muitos agricultores não tiveram outra saída que não alimentar as suas famílias com os grãos que deveriam servir de semente.
Entre Fevereiro e Março, pingos de chuva começaram a cair tardiamente sobre Cahama, graças ao enfraquecimento do El Niño. Os camponeses, porém, não tinham o que plantar. Com Angola afundada numa grave crise económica em virtude da queda do preço do petróleo, o Governo do país não foi capaz de responder à falta de sementes. “Se a semente chegasse a tempo, o povo teria o que cultivar”, diz o soba de Cahama.
A maior parte dos pequenos produtores da África Austral não tem acesso a tecnologias agrícolas, como máquinas, fertilizantes e irrigação. ”Nós aqui só dependemos da chuva, não temos outra coisa”, diz o agricultor Joaquim Tchifunga, de 74 anos. Mas enquanto as técnicas empregadas visando a subsistência são iguais às de seus antepassados, a chuva já não é a mesma.
“Agora a vida está mais difícil. Quando eu era jovem, havia boa chuva e nunca tivemos problemas”, lamenta Elesene Muvumba, agricultora de Mukuni, aldeia nos arredores de Livingstone e a dez quilómetros das Cataratas de Victória, no Sul da Zâmbia. “Não sei por que Deus está a fazer isso”, diz a idosa, para quem as mudanças climáticas globais parecem explicações mais abstractas para a falta de chuva do que a sua fé.
Com as costas vergadas pelo peso dos seus 73 anos, Muvumba empunha um bastão de madeira para caminhar pela pequena plantação nos arredores da moradia da sua família. Mostra os pés de milho que não sobreviveram ao calor, plantados entre Outubro e Novembro do ano passado e que agora se espalham sobre a terra como palha seca. Algumas plantas ainda estão de pé, mas o verde que exibem não garantiram o desenvolvimento dos grãos – delas não sairá farinha.
Meses sombrios pela frente
A farinha, sobretudo de milho, é a base da alimentação na África Austral. Com ela faz-se uma espécie de polenta branca, cujo nome varia de país para país: xima em Moçambique, nshima na Zâmbia, nsima no Malawi, sadza no Zimbabwe, pap na África do Sul, funge em Angola. Dependendo da região, o milho pode dar lugar a outros produtos, como o sorgo, o milhete e a mandioca. Mas o modo de a preparar e a maneira como se consome é, no entanto, parecida: a farinha é despejada em água a ferver, formando uma massa espessa e insossa. Como as carnes são artigos de luxo para a população mais pobre, a papa de milho costuma ser acompanhada por vegetais guisados, como folhas de mandioca ou de abóbora, eventualmente enriquecidos com tomates, amendoim triturado ou o que estiver disponível na região.
Camponeses ouvidos pelo PÚBLICO em Angola, Zâmbia e Moçambique ecoam queixas sobre a falta de ajuda por parte de seus governos para compensar aquilo que lhes falta à mesa. Desta vez, no entanto, não se trata apenas de uma questão de boa-vontade política.
Segundo a SADC, a queda dos preços das commodities no mercado global reduziu a base da receita da maioria dos governos da região, diminuindo a sua capacidade de apoiar os programas de protecção às pessoas afectadas pela seca. Enquanto Angola é refém do petróleo, a Zâmbia é ligada ao desempenho das suas exportações de cobre. Com excepção da África do Sul, cuja economia é mais diversificada, toda a região atingida pela seca depende das exportações de produtos primários.
Sem nunca ter recebido qualquer tipo de ajuda alimentar, Sicily Mululu, 26 anos, também moradora de Mukuni, vê cada vez menos comida na sua mesa. “Às vezes as crianças choram de fome”, diz a agricultora, que vive com o marido, o sogro e os três filhos – nove, sete e quatro anos.
No momento da entrevista, nuvens encobriam a vila de Mukuni, mas o céu escuro apenas parecia combinar com os meses sombrios que Mululu vê pela frente. Mesmo se a sua família conseguir colher todo o milho que replantou em Fevereiro, quando a chuva voltou a cair, a produção feita às pressas não deverá ser capaz de os alimentar nem por uma semana. Numa colheita normal, a família costuma ser auto-suficiente durante três meses, mas tudo o que foi semeado no final de 2015 ficou perdido. “Vamos sofrer, pois os preços estão a subir.”
Alternativas para enganar a fome
Em mais da metade dos mercados da África Austral monitorizados pela Rede de Sistemas de Alerta Precoce de Fome, o milho vendido no retalho estava pelo menos 75% mais caro em Fevereiro deste ano do que no período homólogo do ano passado. A produção abaixo da média em 2015, a expectativa de pouca colheita em 2016 e a depreciação de várias moedas regionais estão entre as razões apontadas para a subida de preços.
Com um menor stock de grãos e a comida mais cara nos mercados, muitas famílias africanas têm arranjado alternativas para enfrentar a fome. Um dos meios mais imediatos é a venda de carvão vegetal. “O carvão ajuda, mas as árvores estão a desaparecer”, repara a zambiana, que lamenta o preço baixo pago pelo produto: um saco com cerca de 20kg no mercado de Livingstone é vendido por 30 kwachas, o equivalente a 2,50 euros. Por ser ilegal, este comércio é arriscado. Quem for apanhado a vender o produto pode ser multado ou preso por crime ambiental.
Na Zâmbia, a seca aumentou a demanda pelo carvão, uma vez que a redução no nível das barragens levou a uma série de cortes de electricidade desde o ano passado. Em vez de solução, porém, essa alternativa energética é uma ameaça.
Segundo dados do Programa Colaborativo das Nações Unidas sobre a Redução de Emissões por Desflorestamento e Degradação Florestal nos Países em Desenvolvimento (REDD+), a Zâmbia possui aproximadamente 50 milhões de hectares de floresta, dos quais perdeu uma média de 250 mil a 300 mil hectares de floresta por ano, entre 1965 e 2005. O programa da ONU tem tentado reduzir esta taxa, que, contudo, continua alta e hoje coloca a Zâmbia entre os dez países que mais emitem gases-estufa com origem na degradação ambiental. A produção do carvão vegetal é uma das principais causas de desflorestamento no país, além de o seu consumo ser altamente poluente. Os dois factores, alertam ambientalistas, contribuem para as alterações climáticas, cujas consequências previstas incluem justamente secas mais severas.
A Zâmbia não é o país mais afectado pela seca na África Austral. É na sua região Sul – onde fica Livingstone – que estão as populações mais atingidas. No balanço nacional desta colheita de cereais, porém, o Governo garante que houve um excedente de produção. Mas os bons – e inesperados – resultados não devem evitar alimentos com preços mais altos, segundo o relatório da Rede de Sistemas de Alerta Precoce de Fome. O motivo é a demanda nos países vizinhos, onde a seca foi mais severa.
Nos supermercados de Livingstone, essa procura reflecte-se na restrição à venda de farinha de milho a um saco por cliente. O principal alvo da medida são os zimbabweanos, que cruzam a fronteira em busca do produto. Desde a polémica reforma agrária promovida pelo Presidente Robert Mugabe no início dos anos 2000, com a expulsão dos fazendeiros brancos de suas terras, o Zimbabwe deixou a condição de “celeiro da África” e passou a depender cada vez mais da importação de alimentos.
Ao lado do Malawi, do Lesoto e da Suazilândia, o Zimbabwe está entre os países da África Austral que já declararam situação de emergência – em Moçambique e na África do Sul, houve um alerta vermelho parcial. Harare já avisou que 2,8 milhões de pessoas necessitam de ajuda alimentar. Antes desta crise, a maior seca já registada no país, em 2010, havia afectado 1,6 milhão de zimbabweanos, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Também está em 2,8 milhões a população afectada pela seca no Malawi. O Governo do país estima em mais de 1 milhão de toneladas o défice de milho para este ano. Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), quase metade das crianças do país estão malnutridas, e o número de casos de desnutrição aguda nesse grupo duplicou desde Fevereiro.
Jarvis Mwenechanya, chefe do Conselho de Gestão de Desastres e Riscos de Mwanza, afirma que a falta de alimentos já afecta quase 60% das famílias desse distrito localizado no Sul do Malawi. A situação é agravada pela instalação no local de cerca de 10 mil refugiados moçambicanos, que desde meados do ano passado fogem do conflito entre as tropas governamentais e a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo). “É uma situação difícil, pois estamos a receber pessoas que se juntam a outras que já estão com restrição no acesso à comida.”
O caso do tomate
O Malawi é conhecido pelo seu bom acolhimento do trabalho das entidades que prestam ajuda humanitária. Segundo algumas dessas organizações, entretanto, o cenário é bastante diferente no seu vizinho do Sul. Em Moçambique, o conflito ameaça condicionar a resposta à seca, que já atinge 1,5 milhões de pessoas tanto nas províncias do Centro (Zambézia, Manica, Sofala e Tete) como do Sul (Gaza, Inhambane e Maputo).
A Renamo não aceita o resultado das eleições gerais realizadas em 2014 e ameaça tomar o controlo de seis províncias no centro do país. O Governo reagiu com armas. Desde meados de 2015, o país voltou a ser marcado por notícias como ataques a veículos nas estradas, atentados a membros dos dois partidos e denúncias da actuação de “esquadrões da morte” e de acções de intimidação contra as populações rurais.
Em Fevereiro deste ano, um veículo da FAO foi atacado por desconhecidos na província de Sofala, no centro de Moçambique. Embora possa ser considerado um caso isolado desde a retomada das hostilidades, o temor de que o episódio se repita no futuro é citado por diversas organizações internacionais ouvidas pelo PÚBLICO. “Esse tipo de conflito, de guerrilha, impossibilita a entrega de ajuda humanitária. Há imprevisibilidade, e os agentes ficam expostos a ataques”, diz uma fonte, sob a condição de anonimato.
O conflito dificulta não apenas a circulação de agentes humanitários, mas também a própria distribuição de alimentos. A serra da Gorongosa é, simultaneamente, principal produtora agrícola da região central do país e um dos principais palcos dos confrontos. Sem condições de segurança, produtos como a batata e o feijão que ali se cultivam não estão a chegar às cidades moçambicanas, onde os preços estão cada vez mais altos.
O caso do tomate é emblemático. Na Beira, a segunda maior cidade do país, a quebra no abastecimento nacional tem levado comerciantes a importar o produto. Nas periferias locais, não é um absurdo vê-lo a ser vendido à unidade. Num país em que mais de metade da população vive com menos de 1,25 dólar (1,10 euro) por dia, pagar até dez meticais – ou 15 cêntimos de euro – por um único tomate tornou esse alimento um bem de luxo.
Nem a vila da Gorongosa, que está circundada pelos produtores, escapa a essa lógica do aumento de preços provocado pelas restrições à mobilidade. Deixar a zona rural para vender o seu produto no mercado mais próximo deixa os agricultores locais vulneráveis a ataques. O resultado é que o preço do pacote de 5kg de tomate quadruplicou no prazo de um ano, alcançando 200 meticais (três euros).
As consequências desse cenário de violência fazem com que, além da chuva, o futuro em Moçambique dependa também do avançar do diálogo entre o Governo e a Renamo – retomado no final de Maio, embora sem baixar as armas. É nessa mesa de negociações que os moçambicanos colocam hoje o seu prato, esperando poder encontrar nele algo mais do que um familiar gosto de repolho.