Outcast: nesta cidade americana há exorcismo à moda do sul
O PÚBLICO foi às filmagens da nova série do autor de The Walking Dead, que se estreia na noite desta segunda-feira na Fox. No Bible Belt, possessão e manipulação na televisão pós-Guerra dos Tronos.
Há sangue na colcha. Não há tecto no quarto. É para melhor se ver a levitação de quem se tenta deitar naquela cama. “Estamos no Bible Belt”, anunciara lúgubre e desnecessariamente o motorista que antes nos conduziu sob a chuva morna da Carolina do Sul, e esse é um cenário que Robert Kirkman, o criador de The Walking Dead, conhece tão bem que gerou a sua nova série.
Outcast estreia-se esta segunda-feira na Fox e em Setembro passado chovia, sempre, na zona de Rock Hill, Carolina do Sul. As filmagens do quinto episódio de Outcast decorriam perto do sítio onde as duas Carolinas, a do Sul e a do Norte, se tocam, mas que pretende retratar uma cidadezinha na Virgínia Ocidental. Tudo parte do Bible Belt, região que também inclui o Kentucky natal de Kirkman e as suas experiências na igreja Pentecostal local - “Eu testemunhei um exorcismo”, enfatizou o autor de BD sobre uma história da sua infância. Mas lá iremos. Para já, “Rome”.
É em “Rome” que mora Kyle Barnes (interpretado por Patrick Fugit, ou o eterno jovem jornalista de Almost Famous) e é em “Rome” que a sua vida é atormentada pelo que parecem ser possessões e presenças em torno de si e da sua família, mas também de outros habitantes. Mas é em Rock Hill que estamos, entre os pingos da chuva e o centro comunitário da First Christian Church onde se reúne a equipa nas pausas. Ou entre um terreno à beira de uma estrada secundária onde Reg E. Cathey (o Norman Wilson de The Wire) caminha na pele do seu xerife e uma casa cheia de livros e bibelôs onde Mildred (Grace Zabriskie, a mãe de Laura Palmer em Twin Peaks) recebe a medo um homem de chapéu negro e presença autoritária interpretado por Brent Spiner (o eterno andróide Data de Star Trek: The Next Generation). Passa-se o dia em cenários diferentes, mas sempre num ambiente de algum negrume.
Na rodagem, percebe-se que a nova série atraiu um elenco multifacetado e reconhecível, mas também que se Outcast joga com as peças do género sobrenatural da possessão (demoníaca?), quer também tentar montar um puzzle diferente. Nas conversas com a equipa é assumido que, claro, clássicos como O Exorcista não são ignorados e são homenageados técnica e tematicamente - “sopa de ervilhas”, ou a mistela verde que simboliza um dos ingredientes de uma boa possessão cinematográfica, é uma expressão que vem constantemente à baila. Mas fica a pista de que haverá medo, sem dúvida, suspense, claro, mas também outros nichos temáticos a explorar. Outcast quer ser como uma matriosca.
Dentro de uma casa real na rua Frayser de Rock Hill - e não a dos cenários sem tecto usados para filmar cenas de acção na “casa” de Kyle que visitámos no início do dia - tenta-se mais um take da cena com Mildred e o homem de negro. “Esperamos sempre que haja um elemento de reinvenção”, diz Chris Black, o showrunner de Outcast, num intervalo nas traseiras da moradia. “É a nossa ambição apanhar algo que o público pensa reconhecer e depois fazê-lo perceber lentamente que - esperamos que para sua surpresa e deleite - não é nada do que esperavam”.
Chris Black trabalhou em séries tão distintas como Mad Men, Star Trek: Enterprise ou Donas de Casa Desesperadas. O PÚBLICO pergunta como é que Outcast, mais uma série de nicho (os zombies, as artes marciais, os superheróis, o terror ou a fantasia fazem muita da televisão por subscrição actual), desta feita uma que conta com as audiências viddos fãs do género “horror”, se pretende afirmar para o grande público (internacional). A resposta é uma das mais comuns, focada na qualidade da história, mas vem com uma nuance dos tempos – Black assume que o mundo televisivo mudou, e não só nos temas em que se aposta ou como se consome “televisão”. “Tentamos ser aventurosos no storytelling”, diz Black, “num mundo pós-Walking Dead e pós-Guerra dos Tronos é-nos permitido ser muito mais ousados”, riposta.
São séries que mudaram as regras do jogo, “são game changers”, postula, citando um episódio e um momento da 1.ª temporada de Guerra dos Tronos que omitiremos parcialmente para evitar spoilers. “Naquela noite [de Junho de 2011] fiquei acordado na cama a olhar para o tecto e a perguntar-me como é que iam sair daquilo. ‘Talvez fosse um sonho…’ Porque mataram o primeiro nome na folha do elenco. Não se faz isso!”, entusiasma-se.
Os públicos “tornaram-se muito mais sofisticados” e hoje “podemos correr riscos e chocar o público de formas que nunca poderíamos antes, mas temos de ter cuidado para não se tornar um cliché - ‘mataram aquela personagem só porque podiam’”.
Mundo Kirkman
Uma nova série de Robert Kirkman é já por si um acontecimento. Criou um comic sobre humanidade e zombies que se tornou na série mais vista por pessoas do cobiçado target dos 18 aos 49 anos nos EUA, e que é a única da televisão por subscrição a partilhar o top dos mais vistos com séries de sinal aberto como a comédia A Teoria do Big Bang. Graças a The Walking Dead, qualquer projecto de Kirkman parece ser uma ideia de Midas. E foi assim com Outcast, que começou a ser escrita, também como comic, ainda durante a primeira temporada de The Walking Dead e que, ao ser casualmente mencionada pelo autor, funcionou como um canto de sereia para o responsável televisivo que o ouviu e pôs imediatamente a bola negocial a rolar.
Nasceu assim esta nova série, que se estreou nos EUA no canal pago Cinemax no dia 3. O actor Reg E. Cathey, que naquele dia de filmagens em Setembro tinha acabado de ganhar um Emmy por uma participação especial em House of Cards, aceitou entrar sem sequer ser formulada uma pergunta. “Telefonaram-me e disseram-me ‘Robert Kirkman tem uma nova série...’ e eu disse ‘Sim!’”.
The Walking Dead foi um sucesso tal que deu origem à prequela Fear the Walking Dead (AMC) tornando Outcast na terceira "série Robert Kirman" em seis anos. Antes da estreia, o Cinemax já tinha encomendado a 2.ª temporada. “Robert diz sempre que não é uma série de terror, que é um drama centrado nas personagens com elementos de horror”, cita Chris Black enquanto gotas gordas de chuva se ouvem a cair sobre a tenda nas traseiras da casa de Mildred.
“É uma série sobre demónios, mas não necessariamente só demónios do Inferno, toda a gente carrega os seus demónios”, diz o produtor. Os comics são como um primeiro guião e uma visão do mundo do próprio Kirkman. “Robert, nado e criado no Kentucky, conhece o Sul americano e este género do gótico sulista”, diz Black, e por isso é muito importante “que tudo transmita a sensação de ser real”.
Brainwashing e fé
A carrinha passa veloz pela paisagem típica da Carolina do Sul, mas também da vizinha Geórgia e do norte da Florida. Estradas longas sem curvas, arvoredo verde alto e denso e, quanto mais para sul, as franjas dos carvalhos-vivos a ondular ao vento. Moradias modestas espaçadas e, entre o verde, o “warehouse country” do Bible Belt - além da forte presença de igrejas protestantes evangélicas e de casas de madeira de cores pálidas, há muitos armazéns de um só andar Pequenas caixas para arrumar um gigantesco país. Nas casas de culto anuncia-se: “Jesus has always been, and always will be, in this church”.
O pano de fundo da série é este, o de uma comunidade que quase actualiza a pintura American Gothic, de Grant Wood. Numa pausa nas filmagens, a jovem actriz Wrenn Schmidt (The Americans, Boardwalk Empire), que é natural da Carolina do Sul, confirma: “Aqui as pessoas definem-nos pela religião, não por ‘quem és tu?’, mas ‘a que igreja vais?’”. Reg E. Cathey interpreta um chefe de polícia negro numa cidade da Virgínia, o que por si só foi um dos factores que mais o interessou na série. “Nas cidades pequenas há uma dinâmica interessante - sabe-se tudo e não se sabe nada. Toda a gente bisbilhota e toda a gente sabe, sabem a história do Kyle, do reverendo, a minha”, diz com seu barítono e riso trovejante, “mas não percebem verdadeiramente o que se passa”.
É a pausa do almoço do elenco, que passa nove ou dez dias a gravar cada episódio. Esta temporada de estreia cobre cerca de 14 dos 18 comics já publicados – Robert Kirkman, diz o showrunner da série, tem um fim planeado para a história e tem cerca de cinco temporadas em mente. Em Outcast, Philip Glenister (Life on Mars) é o Reverendo Anderson, que tenta ajudar Kyle e outras vítimas de “possessão”. Fala do seu papel com um sorriso malandro e da religião com uma distância irónica. Descreve uma das cenas em que prega à sua congregação como “rock ‘n’ roll, uma actuação. O reverendo tem ali o seu palco, a sua plataforma, é a sua altura para ser a estrela rock”.
Robert Kirkman teve “uma educação ligeiramente religiosa”, como contou à Rolling Stone, porque a mãe a certa altura se tornou fiel de uma igreja onde o jovem futuro autor testemunhou “um exorcismo”. “Pareceu-me quase normal”, diz, no âmbito de uma comunidade em que se acredita que “as pessoas que estão doentes na verdade têm demónios nelas que as põem doentes”. Anos depois, esta série com base nessas experiências, que toca temas como a encenação e a crença tem algo a dizer sobre a actualidade, defende Brent Spiner.
“Hoje o terror, de qualquer tipo, faz parte do nosso mundo”. Os causadores dos males de Rome, diz o actor que acabara de terminar as filmagens de O Dia da Independência 2, “são terroristas, estão a roubar, a tirar as nossas vidas, mas roubam-nas de uma forma diferente - não estão a cortar cabeças, estão a possuir, a tornar-se neles”.
Na pequena cidade da série, “há uma luta diferente a travar-se sob a superfície. Uma luta que algumas pessoas conseguem ver e que outras simplesmente não vêem. Acho que isso torna tudo ainda mais aterrorizador”, dirá Robert Kirkman ao New York Times, meses depois da visita de imprensa às filmagens.
Em “Rome”, ou Rock Hill, o chá de Philip Glenister está quase no fim. Outcast “lida com o tema do brainwashing”, defende, reflectindo “em que é que as pessoas estão preparadas para acreditar. O que vemos com grupos como o Estado Islâmico e com os cristãos fundamentalistas extremos”, exemplifica, “é como se pode lavar o cérebro de pessoas vulneráveis que procuram algo, se toma conta delas e explora isso”. Junto à igreja, a carrinha dos gelados passa com a sua música encantatória. Quando se afasta, as câmaras podem voltar a filmar.
O PÚBLICO viajou a convite da Fox International