Arte Rupestre do Vale do Côa: que futuro para este Património da Humanidade?

Que o Estado português retome urgentemente e sem equívocos a gestão do Parque Arqueológico do Vale do Côa e do Museu do Côa.

Em Janeiro de 1996, o recém-eleito governo, chefiado por António Guterres, suspende os trabalhos de construção da barragem de Foz Côa, empreendimento que iria submergir o maior núcleo de arte rupestre paleolítica de ar livre conhecido até então. A medida visava, em primeiro lugar, esclarecer a dimensão e importância científica e patrimonial dos painéis rupestres identificados até à data – “num quadro de serenidade e rigor científico” – para fundamentar uma decisão definitiva sobre o destino a dar … ou à barragem ou às gravuras rupestres, cuja coexistência se afigurava, desde o início, incompatível. Esta medida constitui, ainda hoje, o mais arrojado e corajoso acto de toda a democracia portuguesa em prol do conhecimento e da protecção de um bem cultural, atitude que acabou por ter igual admiração a nível mundial, nomeadamente no seio da comunidade científica. As gravuras que não sabem nadar, como tão bem verbalizaram, trauteando, os estudantes da Escola Secundária de Foz Côa, saíram vitoriosas da inflamada polémica que agitou toda a sociedade portuguesa de então. Os estudos entretanto desenvolvidos por peritos portugueses, em diálogo permanente com investigadores e instituições internacionais, viriam confirmar e reforçar a importância científica e cultural destas primeiras manifestações artísticas da Humanidade.

Em Agosto de 1996 é inaugurado o Parque Arqueológico do Vale do Côa, são estabelecidos circuitos de visita aos núcleos rupestres, constituídas equipas de investigação para actuar no terreno, construídos centros de acolhimento a visitantes, produzida legislação apropriada, em suma, foram criadas todas as infra-estruturas técnicas, científicas e humanas necessárias para dar cumprimento e justificar a decisão política tomada em prol da salvaguarda deste Património.

Em 1998 a Arte Rupestre do Vale do Côa é, assim, inscrita na Lista de Património Mundial da Unesco como testemunho excepcional do génio criativo da Humanidade. Em 2010 esta classificação estendeu-se à Zona Arqueológica de Siega Verde, já em território espanhol. Refira-se ainda que o processo que levou à inclusão do Parque do Côa nessa prestigiada Lista, que envolve sempre uma avaliação científica pelo ICOMOS e a subsequente nomeação pela UNESCO, foi dos mais céleres e consensuais de que há memória.

Em Março de 2011, a poucos dias do final do último governo liderado por José Sócrates, é criada a Fundação Côa Parque para gerir estes núcleos culturais (Museu e Parque Arqueológico), num território de riqueza ímpar em termos patrimoniais e paisagísticos, mas desertificado e em depressão económica. Infelizmente, o modelo “fundacional” de gestão e, sobretudo, de financiamento, viria a mostrar-se completamente inadequado à situação concreta daquelas realidades. Assim, nunca foi definida uma orientação estratégica para o Parque e Museu do Côa, nem implementado um necessário Plano de Gestão onde se incluíssem as funções de salvaguarda, investigação,  promoção e necessária articulação com a zona arqueológica localizada em território espanhol, tal como obriga a legislação internacional quando se trata de um património de valor mundial.

De facto, pouco ou nada foi cumprido desde essa data. Os membros fundadores iniciais (IGESPAR, Turismo do Douro, Administração da Região Hidrográfica do Norte, Município de Vila Nova de Foz Côa e Associação de Municípios do Vale do Côa) nunca se entenderam, nem conseguiram cumprir os seus compromissos financeiros, acumulando-se as dívidas até à asfixia quase total. Hoje, a loja está penhorada, os salários são pagos com recurso a empréstimos bancários, falham os telefones, falha a internet… Não há planeamento, navega-se à vista, com prazo de um mês, tendo como único objectivo pagar contas. Não há verbas para garantir a investigação arqueológica, para manter o Museu, para a vigilância aos núcleos de Arte e do próprio Museu, não há viaturas, não se procuraram fontes alternativas de financiamento e até o PROVERE do Côa (Programas de Valorização Económica de Recursos Endógenos) deixou de ter continuidade, apesar dos esforços da Direcção dos Amigos do Côa (ACOA) no sentido de contrariar esta atitude.

Hoje, em Abril de 2016, não se sabe muito bem quem preside a esta fundação, nem quem dirige o Parque-Museu, dado que o Conselho de Administração se encontra em missão transitória há ano e meio. A indecisão é total. O Estado português tem virado as costas a um Bem que é primeiro nosso e depois de toda a Humanidade. Não soube até ao momento assumir a sua responsabilidade, antes pelo contrário: desresponsabilizou-se da sua missão de gerir, proteger e valorizar um dos mais importantes núcleos de arte rupestre paleolítica de ar livre de todo o mundo ao passa-lo para as mãos de uma fundação pública de direito privado, sem meios, nem estratégias, nem infra-estruturas para cumprir com um “projecto” que nunca teve capacidade para definir.

Por tudo isso urge agora que o Estado português, através dos órgãos próprios do recém-restaurado Ministério da Cultura, retome urgentemente e sem equívocos a gestão do Parque Arqueológico do Vale do Côa e do Museu do Côa, definindo as necessárias políticas e estratégias nas áreas da investigação, valorização, fruição e protecção deste Património que, para além de nosso, pertence a toda a Humanidade.

Presidente do Conselho de Administração do ICOMOS-Portugal

 Presidente da Direcção da Associação dos Arqueólogos Portugueses

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