Papa pede à Igreja que olhe com compaixão para a nova realidade das famílias
Papa pede à Igreja que olhe com compaixão para a nova realidade das famílias Exortação apostólica Amoris Laetitia abre novas portas para a inclusão dos divorciados que voltaram a casar ou para quem vive em uniões fora do matrimónio. Ninguém "pode ser condenado para sempre"
O Papa desafia a Igreja Católica a pôr de parte a “fria moralidade burocrática” e ser misericordiosa com quem se divorciou ou vive uma união fora do casamento, afirmando que “ninguém pode ser condenado para sempre”. Na muito aguardada exortação apostólica Amoris Laetitia (Alegria do Amor) – 260 páginas que poderão ser decisivas para definir o seu legado – Francisco não autoriza explicitamente a comunhão aos católicos recasados, um dos temas que despertou mais paixões no inédito debate interno, mas sugere caminhos para a sua plena integração na vida da Igreja.
Passaram quase três anos desde que o Papa anunciou, em Agosto de 2013, que iria convocar os bispos de todo o mundo para discutir “os desafios da pastoral da família no contexto da evangelização”, extensa formulação para uma discussão há muito aguardada sobre o distanciamento entre aquilo que são os ensinamentos da Igreja e a vida de muitos cristãos, sobretudo nos países desenvolvidos.
Pelo meio foram enviados dois questionários inéditos às dioceses de todo o mundo, para ouvir as opiniões do clero, mas também dos crentes e das organizações no terreno. Por duas vezes, no Outono de 2014 e 2015, centenas de bispos acorreram ao Vaticano para sínodos muito mediatizados e em que ficaram claras as profundas divisões entre os sectores mais conservadores – hostis à ideia de relativização da doutrina ou de abrandamento das normas – e a ala mais reformista – favorável a uma maior adaptação dos ensinamentos teológicos à realidade do século XXI. Um debate aceso, com intrigas, fugas de informação e mesmo um nível inédito de críticas ao Papa.
Na exortação que divulgou nesta sexta-feira – escrita numa linguagem acessível e com citações de alguns dos seus autores preferidos –, Francisco procura um equilíbrio delicado entre os dois extremos e reconhece as diversidades culturais que, como ele próprio afirmou no segundo sínodo, fazem com que “aquilo que é normal para o bispo de um continente se possa revelar estranho, talvez mesmo um escândalo para um bispo de outro continente”. Mas, sem beliscar os pilares da doutrina católica sobre a família, o direito à vida ou a moral sexual, distancia-se claramente daquele que tem sido a prática pastoral das últimas década, abrindo portas para mudanças futuras.
Igreja atenta à bondade
“Somos chamados a formar consciências, não a substituí-las”, escreve o Papa, numa frase que o vaticanista Andrea Tornielli, jornalista do La Stampa e um dos poucos a ter tido acesso prévio ao documento, classifica como essencial para perceber a direcção em que Francisco pretende levar a Igreja. Ao mesmo tempo que afirma o primado da família tradicional, assente no casamento indissolúvel entre homem e mulher e insiste que “a Igreja nunca deve desistir de propor esse ideal”, sublinha que “não é possível continuar a dizer que todos os que se encontram em situação irregular vivem num estado de pecado mortal e são privados da graça divina”.
Antecipando as críticas dos tradicionalistas, o Papa diz perceber a posição dos que “preferem uma pastoral mais rigorosa, que não deixe lugar a confusões”. “Mas creio sinceramente que Jesus quer uma Igreja atenta à bondade que o Espírito Santo demonstra perante as fraquezas humanas, [quer] uma mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente os seus ensinamentos objectivos, faz sempre todo o bem que pode, mesmo que com isso suje os sapatos com a lama da rua”.
Os mais de 300 pontos da exortação, que Tornielli classifica como uma “nova constituição”, abordam quase tudo que há abordar, da contracepção (onde são reafirmados os postulados dos antecessores), à necessidade de melhorar a preparação dos jovens para o matrimónio, passando pela condenação da violência contra as mulheres ou a importância da convivência entre várias gerações. Mas depois dos meses de embates entre reformistas e conservadores, foi o veredicto do Papa sobre os temas mais controversos que todos quiseram ouvir.
Como se esperava, o documento não traz novidades sobre a posição da Igreja em relação aos homossexuais – qualquer inflexão tinha sido descartada nos sínodos e Francisco não foi além de afirmar que a Igreja “deve respeitar todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual”. Sem as condenar, afirma que “não há qualquer fundamento para comparar ou estabelecer analogias, mesmo longínquas, entre as “uniões homossexuais e o projecto de Deus sobre o casamento ou a família”.
Em contrapartida, o texto valoriza as uniões civis heterossexuais e os casamentos civis, afirmando que quando assumem um compromisso consistente são “sinais de amor” a que a Igreja não pode fechar as portas – um aggiornamento significativo perante uma realidade cada vez mais maioritária nos países ocidentais.
Texto abrangente
Mas é na integração dos divorciados que a exortação vai mais longe, ainda que o faça de forma implícita, sem mexer na doutrina e deixando margem para o “discernimento pastoral” perante situações que devem ser consideradas de forma individual. O caminho escolhido nasce do discurso que o cardeal reformista Walter Kasper proferiu no consistório de 2013, a pedido do Papa, e no qual sugeriu que os católicos que voltam a casar sem terem anulado o primeiro matrimónio (vivendo em adultério aos olhos da Igreja) poderiam voltar a comungar mediante um processo de arrependimento e reflexão, sob a orientação de um sacerdote.
A sugestão indignou os conservadores, que viram nesta sugestão um ataque à indissolubilidade do matrimónio. Mas na exortação Francisco recusa o dogmatismo, ao dizer que “mesmo vivendo numa situação objectiva de pecado – da qual pode não ser subjectivamente culpada – uma pessoa pode viver na graça de Deus, pode amar e crescer na vida da graça e na caridade, recebendo a ajuda da Igreja para esse fim”. Numa nota de rodapé que pode ser central, a acrescenta-se que, “em alguns casos, isso pode incluir a ajuda dos sacramentos”.
Um discurso que permite acomodar de alguma forma as posições de ambos os lados. Ouvido pela Reuters o teólogo conservador americano George Weigel diz não ver no texto qualquer abertura que permita a comunhão dos recasados, mas apenas “um chamamento para a Igreja ser criativa na integração de pessoas que vivem situações difíceis”.
Também o cardeal patriarca de Lisboa Manuel Clemente afirmou, citado pela Lusa que o documento não refere “possibilidade de um divorciado voltar a casar catolicamente ou de comungar”, que apesar de afirmar uma “lógica de integração de todos os que são baptizados”. Já a Conferência Católica dos Baptizados, um movimento progressistas francês citado pela AFP, congratulou-se por a exortação “dizer sem o dizer que um católico que faça o seu trabalho de discernimento pode, se a sua consciência o ditar e o padre consentir, aceder aos sacramentos”.
John Allen, antigo correspondente no Vaticano e editor do site católico norte-americano Crux, sublinha que a solução encontrada é já realidade em algumas paróquias, seja na Europa seja nos EUA, “onde é possível ver católicos divorciados e recasados que comungam” com a anuência dos padres. “O que o Papa Francisco fez foi deixar que o resto do mundo conheça um dos segredos mais bem guardados da Igreja Católica: Sim, a Igreja tem leis e leva-as muito a sério, Mas mais do que leis, tem gente de carne e osso e também leva muito a sério as suas circunstâncias e lutas.”