Contra o muro
Consoante muda
A febre brasileira, que não poderá deixar de alarmar quem é amigo do país, leva a que cada um espere o pior do outro e, ao reagir, acabe por forçar mesmo o pior do outro. Hoje, não basta que alguém condene politicamente o governo: é necessário proclamar a necessidade da sua aniquilação. Não basta que alguém censure o comportamento dos poderes fácticos no país: é preciso proclamar que, perante um golpe, tudo vale.
De caminho, quem tentar não ir na onda geral é acusado de estar em-cima-do-muro e, portanto ser cúmplice da corrupção (para uns) ou do golpe (para outros).
Isto não pode ser assim. É possível estar contra a nomeação de Lula como chefe da Casa Civil e ao mesmo tempo estar contra a impugnação (ou impeachment) do mandato da presidente Dilma. E se quisermos que a febre baixe, deve ser necessário defender a correção de ambas as posições sem ser levado na enxurrada.
Escrevi aqui na semana passada, ainda antes de Lula aceitar a nomeação, que o convite que Dilma lhe fez constituía um enorme erro. Caso Lula ocupasse um cargo ministerial simbólico, ele estaria a admitir implicitamente que o fazia para fugir ao juiz Sérgio Moro. Caso o seu ministério fosse politicamente relevante, como é o caso (Chefe da Casa Civil é quase o equivalente a primeiro-ministro num regime parlamentar), a admissão seria a de ineficácia política por parte da própria presidente.
Isto não pode querer dizer, porém, que a ineficácia política de Dilma (aliás muito forçada por um Congresso venal e incompetente) seja motivo para acabar com um mandato conquistado nas urnas. Vejamos: nem Dilma, nem sequer Lula, foram acusados de corrupção. As suspeitas sobre Lula não são propriamente avassaladoras – ocultação de posse de um apartamento que ele diz ter desistido de comprar e de um banal “sítio” de férias – e francamente ridículas, se pensarmos no habitual para a escala brasileira. Mas sobre Dilma nem isso há, e num regime presidencialista o impeachment existe para afastar um presidente por crime, não por inépcia ou desavença política. Ao optar pelo afastamento da presidente, o Brasil estará a dar um passo atrás no caminho da sua democratização.
E mais: veremos se, afastada Dilma, a operação lava-jato não será depois esquecida. É que, muito mais do que a atual presidente, todos os seus possíveis sucessores estão enterrados até aos joelhos, se não mais, nas suspeitas de corrupção: o vice Michel Temer, o presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (de quem foram descobertas contas na Suíça) e o presidente do Senado Renan Calheiros. Como pode o Brasil avançar com uma linha sucessória destas?
O mais aflitivo de toda esta situação é que a vontade de aniquilar o adversário impede a reforma do sistema político e a natural renovação das elites por uma geração menos comprometida. Há, apesar de tudo e em vários quadrantes políticos, uma nova geração que entende os problemas do Brasil e a forma de os ultrapassar – mas o atual maniqueísmo impede essa geração de emergir.
Esperemos que quem é acusado de ambiguidade no Brasil tenha coragem de dizer: não estou em cima do muro, estou contra o muro. Contra a corrupção, claro. Pela democracia, sobretudo.