Atingidos objectivos iniciais na Síria, Putin manda recuar aviões
Quebrar o isolamento internacional da Rússia era o grande propósito da intervenção dizem os analistas. Apoio à manutenção de Assad é incerto, mas Kremlin tem agora boa parte do jogo na mão.
Vladimir Putin tornou-se mestre na arte de apanhar os adversários desprevenidos – quando ninguém acreditava que o impasse na Síria podia ser quebrado pela via militar, os bombardeamentos russos abriram uma auto-estrada para as forças de Bashar al-Assad reconquistarem territórios essenciais à sobrevivência do regime; agora, de novo sem pré-aviso, anunciou a “retirada da maior parte do contingente”, alegando que os objectivos da missão foram “globalmente atingidos”. De um golpe, o Presidente russo cala os receios de que o país fosse arrastado para um “novo Afeganistão” e, tendo mudado o curso dos acontecimentos no terreno, assume-se como potencial árbitro numa solução política para o conflito.
O momento escolhido para o anúncio não foi ao acaso: coincidiu com o reinício das negociações entre o regime e a oposição síria, as primeiras desde a entrada em vigor de um frágil mas inédito cessar-fogo, e foi feito na véspera do 5º aniversário dos primeiros protestos na Síria, que Assad reprimiu violentamente. Horas mais tarde, os primeiros caças e aviões de transporte deixavam Latakia e regressavam à Rússia, onde os pilotos foram recebidos como heróis.
“É um desenvolvimento significativo” que pode ter “um impacto positivo sobre o avanço das negociações”, reagiu o enviado especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, que não foi brando nas críticas quando, no início de Fevereiro, a aviação russa abriu caminho a uma ofensiva do Exército sírio contra Alepo, a maior cidade da Síria, precipitando o fim da primeira ronda de contactos. O que mudou em pouco mais de um mês para uma viragem tão abrupta do Kremlin? A pergunta repete-se desde que, segunda-feira à noite, Putin ordenou a retirada parcial. “Desde o início ficou claro que Moscovo não queria salvar o regime de Assad a qualquer preço, o seu principal objectivo era sair do isolamento internacional e isso foi conseguido”, explicou o analista Georgi Bovt, citado pela AFP, resumindo a leitura feita pela maioria dos analistas aos cálculos estratégicos do Presidente russo.
A reentrada na cena internacional, depois da anexação da Crimeia e da guerra no Leste da Ucrânia, começou a desenhar-se com a aproximação a Paris após os atentados de Novembro e foi selada a 12 de Fevereiro com o acordo internacional para a “cessação de hostilidades” na Síria, de que a Rússia e os Estados Unidos se assumiram garantes. Cinco meses antes, no início da intervenção russa, Washington não admitia mais do que contactos entre as respectivas chefias militares, a fim de evitar eventuais colisões de aviões sobre o espaço aéreo sírio.
“Na frente diplomática não há dúvidas de que a intervenção de Putin pôs fim a qualquer esperança de que seria possível ignorá-lo ou isolá-lo”, concorda Mark Galeotti, professor da Universidade de Nova Iorque e especialista em segurança russa, acrescentando que, nove mil missões aéreas depois, Moscovo conseguiu dar um novo fôlego “ao seu último cliente no Médio Oriente” e é agora “um interveniente mais importante no futuro da Síria do que os Estados Unidos”.
Na decisão de retirada pesaram igualmente os receios de que, depois dos rápidos avanços feitos nos últimos meses pelo regime, o conflito voltasse a cair num impasse, o que podia eternizar a intervenção – com custos, tanto humanos como económicos pesados, num país que ainda mantém viva a memória de dez anos de guerra no Afeganistão. “Moscovo poderia ter-se enredado nesta guerra […] mas preferiu retirar as suas forças quando dispõe de argumentos de peso para apresentar a campanha síria como uma vitória”, escreveu o jornal Kommersant, sublinhando que, ao contrário de Assad, o objectivo de Putin nunca foi libertar todo o território sírio.
A Rússia vai continuar activa na frente militar: mantém, além do porto de Tartus, a base aérea em Latakia, de onde continuarão a partir aviões para missões de observação e ataque aos jihadistas do Estado Islâmico, e vai deixar no país os modernos sistemas de defesa antiaérea S-400. Ajustes que podem ser rapidamente revertidos, se a situação no terreno se modificar, mas que indicam que, depois da pressão militar, Putin entende que a prioridade deve ser dada às negociações políticas.
Chegados a este ponto, as reais intenções de Putin voltam a dividir opiniões. “Não sabemos se ele está a desistir de Assad, mas os russos estão a mostrar-lhe que querem que as negociações avancem”, disse à Reuters um diplomata ocidental, sob anonimato. Outros observadores acreditam que a intervenção russa deu já ao regime sírio, se não mesmo a Assad, trunfos suficientes para garantir a sua sobrevivência. Ao fazer dos rebeldes sírios o seu principal alvo, “Moscovo atingiu o objectivo de transformar a guerra na Síria numa escolha binária para o Ocidente, entre o terror do Estado Islâmico e a brutalidade de Assad”, acredita o analista Josh Cohen.
Acusada de inércia, a Administração norte-americana dá a entender que não se opõe ao protagonismo russo. “Hoje, quando celebramos o quinto aniversário do início desta terrível guerra, estamos perante a melhor oportunidade que tivemos em muitos anos de lhe pôr fim”, disse o chefe da diplomacia norte-americana, John Kerry, ao anunciar que vai na próxima semana a Moscovo encontrar-se com Putin. A estratégia do Presidente russo, escreveu o antigo secretário de Estado adjunto dos EUA PJ Crowley, “ainda pode revelar-se perdedora a longo prazo, mas actualmente é ele que comanda o jogo e decide o que acontece em seguida”.