Que bem se está em Villa Soledade

Villa Soledade é o segundo álbum dos Sensible Soccers. Música com o seu próprio mundo dentro, lúdica e cerebral, memória de passado e desejo de presente. Uma viagem irresistível

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Daniel José

“Estávamos lá em casa, em Fornelo, onde a gente ensaia”, começa a contar Hugo Gomes. Fornelo, localidade equidistante de Vila do Conde e da Trofa, centro de operações dos Sensible Soccers, banda que é um dos mais improváveis sucessos da música portuguesa recente. Estamos a meio de uma tarde invernosa num pequeno café em Santa Apolónia, Lisboa. Enquanto o ruído da aula de dança no primeiro andar invade o rés-do-chão, pintado a laranja vivo, onde o Ípsilon encontrou Filipe Azevedo (guitarra), Manuel Justo e Hugo Gomes (ambos tocam sintetizadores e instrumentação variada), este último recorda o dia em que saíram da casa em que ensaiam para se aventurarem pelas ruas de Fornelo.

“Agora já começamos a conhecer uns tasquitos, mas ao início só conhecíamos um café onde nunca estava ninguém”. Entretanto, abriu outro café no quartel dos bombeiros locais. Foi a ele que, com fome e sem nada para comer, se dirigiram. “Na vitrine, só havia uma coisa, um bollycao de marca branca que é importado e, mesmo assim, chega ao consumidor final a 30 cêntimos”. Filipe corajoso, pediu um. O chocolate não sabia a chocolate, o pão não sabia a pão. Uma tristeza - mas o que se poderia esperar de um bolo industrial, importado, vendido a uns inacreditáveis 30 cêntimos? Nas mãos dos Sensible Soccers, espera-se isto: Bolissol, faixa número três de Villa Soledade, o segundo álbum da banda e sucessor de 8, disco que, embalado pelo protagonismo online e offline do single Sofrendo por você, tornou esta banda de instrumentais híbridos, onde se fundem de forma surpreendente música ambiental, propulsores kraut, electrónicas dançáveis ou space-rock, num pequeno fenómeno crítico e público (concertos esgotados, destaques nas listas de melhores do ano).

Bolissol: subtexto de funk sintético, muito 80s, guitarra picada, sugestões de flautas andinas processadas electronicamente e, genericamente, uma estranha sensação de nostalgia eufórica, encenada numa versão low-cost de festas em iates filmadas para telediscos de aqui há (muito) atrasado. “Achámos engraçado dar aquele título à música porque era a nossa música mais barata”, continua Hugo Gomes. “É a mais parola do disco. Os sons são parolos e tens para ali umas flautas peruanas. Se era ser parola tínhamos que usar sons que também o fossem”. Não usaríamos a expressão “parola” para a definir – não pode ser parolo dançar com ela como nos apetece dançar. De qualquer modo, a música que os Sensible Soccers fazem não é dada a transparências, como se depreende pelo facto de terem visto, onde ninguém mais veria, um bollycao de marca branca numa pérola de música lúdica (se eles não nos dissessem, também não conseguiríamos encontrar Sob Evariste Dibo, mago da bola do Rio Ave dos anos 1990, ou Nikopol, trilogia de banda-desenhada de Enki Bilal, na música assim baptizada que gravaram para 8).

Nasceram quarteto e tornaram-se um trio no período imediatamente anterior à gravação do novo álbum, com a saída do baixista Emanuel Botelho. “Foi uma tristeza ele sair, porque gostávamos de tocar com ele e porque gostávamos de o ter connosco, mas tem uma vida diferente da nossa, vive mais afastado [em Coimbra], é casado e tem uma filha. Aconteceu assim e a vida continua”. Apesar da mudança de formação, a natureza da música dos Sensible Soccers não se alterou, como será possível constatar nos concertos de apresentação do álbum, dias 11 e 12 de Março na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa (primeira data já esgotada), e dia 26 de Março no Cine-Teatro Garrett, em Póvoa de Varzim.

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Filipe Azevedo, Manuel Justo e Hugo Gomes movem-se entre géneros e imaginários, alimentando-se de vários estímulos e actuando depois como centrifugadora e misturadora de referências Daniel José

Os Sensible Soccers movem-se entre géneros e imaginários, alimentando-se de vários estímulos e actuando depois como centrifugadora e misturadora de referências de que sairá música de difícil classificação mas de apelo imediato. O Sensible Soccers são jogo cerebral e abandono físico, são muito sérios e muito bem-humorados. São indiscutivelmente cá da terra mas fazem música impossível de delimitar geograficamente. Em Villa Soledade, que será hoje editado em Portugal e que terá edição brasileira pela Balaclava Records e francesa pela Forecast Label, isso torna-se ainda mais claro. “O 8 tinha um conjunto de propostas individuais, coleccionadas avulso”, aponta Manuel Justo. “Neste, tudo pertence a um mesmo espaço, até resultado do material que fomos adquirindo. Usámos menos sons, usámos sintetizadores antigos com carácter e, sonicamente, criou-se uma maior ideia de conjunto”, explica Hugo Gomes.

Na estrada nacional entre a Trofa e Vila do Conde
Villa Soledade começou a nascer numa encomenda conjunta do GNRation, em Braga, do Festival de Curtas de Vila do Conde e do Teatro Maria Matos em Lisboa. Um concerto/espectáculo visual criado em colaboração com Laetitia Morais. A música dos Sensible Soccers como guia para as imagens montadas pela artista visual, até que uma e as outras se tornassem o mais possível inseparáveis. Não sendo reflexo directo de Paulo, assim foi baptizado o espectáculo, a música de Villa Soledade descende dele directamente. “Tocar com aqueles elementos visuais foi uma experiência confinada àquelas três apresentações, mas a composição musical do ‘Paulo’ influenciou a forma como fizemos este disco”, esclarece Filipe Azevedo. Mas o que é, afinal, esta Villa Soledade? Regressemos a Fornelo e suas redondezas.

Atravessando a estrada nacional que guia Vila do Conde à Trofa, iremos encontrá-la. “Uma casa que é uma freakalhice. Tem um jardim com uma Torre Eiffel e réplicas fiéis do autor espalhadas, lápides com dizeres estranhos, macacos a beber de um chafariz”, descrevem. Aquela casa, contam, é a “homenagem gigante”, sempre em construção e ampliação, de um pai ao filho falecido. Chamemos-lhe o zénite dessa paisagem que os envolve agora, enquanto criadores de música numa casa em Fornelo, e que já os envolvia, eles que nasceram em São João da Madeira e em Vila do Conde, enquanto crianças. Filipe Azevedo fala de “toda a zona que circunda o grande Porto, suburbana, rural e industrial, muito próspera nos anos 1990 e hoje decadente”. Um imaginário onde convivem o deprimente e o esperançoso.

“A parte deprimente é o real, a parte esperançosa nasce das nossas private jokes, de conseguir achar piada a muito do que ali vemos, de gostar muito daquela ideia do Portugal que queria abrir a maior discoteca do mundo. Conseguimos retirar dali algo inspirador”, afirma Hugo Gomes. A música não é aquilo. “Na música em si esse imaginário não está presente, até porque esses conceitos surgem posteriormente”, acentua Filipe Azevedo. Mas aquilo acabará, de certa forma, na música, em títulos como Nunca mais me esquece, Shampom, a já referida Bolissol e a própria Villa Soledade. Ou nisto que, em determinado momento, diz Hugo Gomes: “Cada vez mais sentimos que somos muito influenciados pelo que ouvíamos com os nossos pais quando éramos putos. Aquelas músicas mais foleiras dos anos 1980 que se ouviam em cassete nos carro. Essa memória continua bastante presente, obviamente misturada com elementos mais eruditos e mais contemporâneos”.

Só para nos trocar as voltas, Villa Soledade começa com Clausura, épico ambiental kosmische de quase nove minutos, magistral momento de entrada no universo de “Villa Soledade”, e despede-se com a curta Apertura, habitante do mesmo espaço sonoro. As duas faixas acentuam a ideia do álbum como um corpo fechado, à antiga, com princípio, meio e fim. Entre elas, essa capacidade de nos colocar no centro do universo criado, absortos do mundo em volta, completamente imersos no som.

Villa Soledade recontextualiza para a idade espacial a navegação portuguesa do Fausto de Lembra-me um sonho lindo; Nunca mais me esquece é ginga afro-beat e devaneio jazz-funk em salão de baile criado em banda-desenhada sci-fi; AUX é planagem em momento de vigília; Shampom surge como house mutante para robots de sangue quente.

Inventado por três tipos cheios de música na cabeça, o álbum desafia estruturas e convenções de géneros musicais, movendo-se nos espaços deixados em aberto entre eles. Acelerando numa outra nacional 104, uma que só aqui existe, deixamo-nos deslumbrar com o novo que parece irromper a cada curva da estrada. Sorridentes, os Sensible Soccers comandam a viagem com felicidade matreira. Sabem muito bem o que estão a fazer e fazem-no muito bem. Villa Soledade. Chegámos. Avançamos por ela dentro. Tudo é novo uma outra vez.

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